Os bons tempos…
A sinceridade é quase inescapável, embora o uso de disfarces também o seja. A conclusão é que – andando os dois sempre juntos – o discurso nunca é claro, sempre é codificado, de alguma forma. Ou seja, ele é claro para seu destinatário pré-ordenado e precisa ser decodificado pelo destinatário secundário.
A folha de são paulo de hoje traz uma matéria chamada Achar doméstica vira desafio e famílias têm que mudar hábitos, na secção cotidiano. É um lamento mal disfarçado, essa matéria que inicia por dizer que há quinze anos bastava um anúncio de três linhas para contratar uma empregada doméstica.
A coisa é previsível – não apenas por ser da folha – e segue o roteiro habitual de citar especialistas. Estes são pseudo-intelectuais a serviço dos média, prontos a despejarem quaisquer análises, com a terminologia que costumeiramente faz o leitor comum pensar em ciência.
O sofisma dos especialistas passa por desprezar evidências, abordando-as como se fossem aspectos secundários. Os tais especialistas da folha – que os têm para tudo, desde emprego até a vida sexual das abelhas – não dizem abertamente: o desemprego caiu drasticamente e a renda média aumentou. Não dizem porque se dissessem estariam a falar bem do responsável por esta melhora: Lula.
O sofisma sob nome de análise achega-se à patifaria – não poderia escapar a isso – quando insere um elemento volitivo na questão. A análise diz que agora poucas pessoas querem empregos domésticos. Dizem como se um estigma social, uma posição de escravidão mal disfarçada, fosse uma questão de querer-se ou não.
Eles, os tais analistas ou especialistas, não dizem corretamente que, hoje, menos pessoas precisam submeter-se à mal disfarçada escravidão de trabalhar em posição subalterna e estigmatizante de empregada doméstica. A questão não é de querer, é de poder escolher outro trabalho, que não carregue o peso da inferioridade social, um trabalho que, no Brasil, sempre considerou-se quase um favor prestado pelo senhor ao servo.
E isso tem explicações históricas relativamente fáceis. Aqui, houve escravismo até aos finais do século XIX. O pior serviço que o escravo podia desempenhar era nas plantações e o melhor dentro das casas. Então, o serviço doméstico era uma tremenda atenuação dos males da servidão no campo.
Daí, a raiz do trabalho doméstico é um não trabalho, ou seja, um favor do senhor, de atenuação dos rigores da servidão. Mais enraizado na percepção social da condição servil que na pobreza, pura e isoladamente. Porque um trabalho mal-remunerado, em sociedades mais antigas, é ainda um trabalho e assim percebido.
O estigma social do trabalho doméstico é imenso, no Brasil. Basta observar-se que as pessoas que o desempenham não querem e esforçam-se para que seus filhos não se destinem a ele, independentemente do aumento de salários na atividade. A questão aqui é de poder não se dedicar a este trabalho, porque querer, nunca se quis.
Excelente!
🙂
Parabéns pelo texto. Ficou muito bom.