O vulgo é muito inumano racionalmente e, portanto, humano. Banalidade e falta de energia não provieram de outra coisa senão da racionalização do quase nada, feita com instrumentos precários. A racionalização da banalidade leva-o a buscar ilusões de originalidade.
A pequena transgressão dá ilusão de originalidade, assim como a moda, que sempre vai e volta, mas é percebida como original em cada tempo de retorno.
O caso é que há um parque na cidade. Pequeno, é verdade, mas relativamente agradável, arborizado, com algum relvado, equipamentos para exercícios físicos e uma pista de aproximadamente um quilômetro, para caminhadas e corridas.
A pista tem uma largura média de dois e meio metros e tem setas pintadas a indicarem o sentido, que é anti-horário. Não é sem razão, nem é alguma violência ou supressão de direitos determinar-se um sentido para os caminhantes e corredores. É uma questão de facilitar a vida de todos.
O sentido único maximiza a eficiência de uma pista relativamente estreita, porque todos podem antecipar-se nos movimentos, já que vêm quem vai à frente. Além do sentido único, há uma faixa de mais ou menos 50 centímetros, dedicada exclusivamente à corrida.
Pois são frequentes as pessoas que caminham e correm no sentido inverso e fora das faixas adequadas, o que gera encontrões, paradas, saídas da pista para desviar dos que vêm em sentido contrário e outros aborrecimentos que simplesmente podiam não haver.
É notável que os caminhantes e corredores do sentido inverso fazem-no voluntariamente e trazem um discreto sorriso de canto de lábios. As setas pintadas no pavimento são grandes demais para se ignorarem e a maioria dos frequentadores é alfabetizada e, assim, capaz de ler a palavra corrida, escrita no chão.
É o prazer da pequena transgressão, aquela impune – até porque seria mais vulgar punir isso que o fazer – que dá ao sujeito a sensação de originalidade.
O vulgo adora a pequena transgressão na mesma proporção em que é incapaz de grandes atos, sejam estes crimes ou criações de outros tipos. Não tem energia vital para o grande ato, não tem inteligência para perceber que a originalidade do banal é ilusória.
Ele precisa desta ilusão, como precisa da moda, o retorno contínuo que não parece uma roda a girar. A moda se auto disfarça, faz crer na novidade, banaliza a idéia de originalidade. E foram todos levados a crer na necessidade de originalidade e, portanto, a ignorar o que isto seja.
A pequena transgressão não faz mais que gerar embaraços e manter apagada a força humana.
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