Pode ser bom escrever com raiva, desde que se saiba bem estar possuído por tal inclinação. Saber-se disso já é deixar a raiva escoar. E, escrever nesse momento mantém a incisividade que o passar do tempo pode retirar.
A escassez de médicos e outros profissionais do tratamento de saúde cobra um preço enorme da sociedade. E gera boas remunerações para os que aí estão, mas não é disso que se trata, não se trata de ganharem bem ou mal, que entrar nessa discussão é cair voluntariamente em armadilha.
O problema é do outro lado, ou seja, do lado dos destinatário dos serviços. Esses pagam – ou o governo paga por eles, embora haja médicos que recebam dos dois – e recebem um serviço ruim! Recebem um serviço pouco, qualitativa e quantitativamente e demorado e arrogante e que se supõe impossível de ser de outra forma.
Abram-se faculdades de medicina em cada esquina, pois. Aumente-se o número de médicos, para que o serviço melhore, ao menos quantitativamente e que tenha reduzido seu componente de arrogância, derivado direto da escassez.
O argumento elitista e sofístico contra essa ampliação gira em torno a qualidade ou, melhor dizendo, a uma possível queda da qualidade dos profissionais. Esse argumento é, ele próprio, imensamente arrogante, pois baseia-se na suposição de que a qualidade de todos os profissionais é grande.
O que é grande, na medicina brasileira, são os investimentos materiais, em equipamentos, em clínicas com assinatura de arquitetos que se poderiam chamar decoradores do mau-gôsto dominante de cada ciclo de dez anos. Ontem, mais doirados, hoje mais painéis escuros, amanhã qualquer bobagem visual que a moda dite.
Só piora o que é bom, deve-se ter isso em mente, bem fixadinho, para evitar os raciocínios de inverdades óbvias. E a saúde, serviço público ou privado de resolução e criação de estados mórbidos não vai bem, neste país. É difícil fazê-la pior do que está.
Os grandes médicos são poucos, como em qualquer outra profissão. E isso faz sentido, porque os grandes problemas clínicos também são poucos. E os grandes médicos são precisamente aqueles que não se ocupam de fazer o discurso contra o aumento do número de cursos e de profissionais, porque sabem que isso é uma questão estatística.
A enorme maioria dos problemas é trivial, algo que um profissional que saiba ler e escrever e tenha boa-fé resolve. O grande problema, enfim, é de disponibilidade e de não se entregar à estupidez absoluta. Havendo uma e não havendo a outra, estará tudo bem.
Mas, os preocupados com a manutenção da reserva de mercado discursarão bravamente, eles mesmos que não fazem mais que atender em escala industrial, utilizando 10% de alguma ciência médica que tenham decorado na faculdade e tenham-se apressado em esquecer, ao depois de receber a carteira do CRM. É natural, quem faz reclama de quem fará o mesmo.
Mas, o triunfo do discurso pela qualidade – pelos que não trabalham com ela – implica na manutenção das esperas de três ou quatro horas por alguma bobagem, implica nas mortes de pobres em hospitais públicos, implica nas cobranças duplicadas ao governo e aos pacientes.
A questão é saber-se se o país, um conjunto discretamente maior que o número dos médicos, quer isso.
Seria um excelente debate com a sociedade.
Uma pena o povo não perceber isso…