O Brasil é caso de estudo no que se refere a concentrações abissais de rendas por prazos muito longos. Também é objeto precioso de estudos sobre inércia social e sobre a capacidade de um pequeno grupo manter as rédeas do país, em benefício próprio, mesmo que isso implique em prejuízos imediatos e tangíveis para a maioria.
Para decepção dos amantes de lugares-comuns, não se trata aqui daquela síndrome que alguns sequestrados apresentam e que consiste em se enamorarem dos sequestradores. A coisa é muito menos simples e não se presta a abordagens simpáticas ao médio-classismo como são estas a partir de lugares-comuns. Não é a vítima que se torna simpática ao agressor por conta de uma convivência forçada, excepcional e traumática. É a vítima que ignora sua condição.
Só há – e desculpe-me quem ler este texto pelo corte abrupto – duas inclinações e propostas políticas: uma propõe concentrar mais a apropriação dos rendimentos; outra propõe desconcentrar um pouco a apropriação. Todo o resto é bobagem e adereço a querer disfarçar esta dicotomia. Estas bobagens passam geralmente por considerações pueris sobre capacidades inatas, sobre esforços individuais, sobre méritos, sobre natureza.
É interessante apontar que o disfarce é utilizado pelos proponentes da maior concentração, sempre. E também é digno de nota que os proponentes da maior concentração negam veementemente a historicidade do humano e, em via inversa, insistem numa natureza humana tão improvável quanto inexistente. Natureza humana, para os defensores da maior concentração de rendas, é um axioma a ser vertido em mantra, lento, repetido…
Isso que a teoria chama natureza é desdito por sucessivas naturezas conflitantes a depender da extensão do período que se considera. Ou seja, haveria tantas naturezas humanas quantos são os períodos históricos considerados, o que nega o próprio conceito de natureza como essência e identidade, coisa herdada de Parmênides.
A concentração de apropriação de rendimentos não é natural, como não é qualquer coisa de humano. Estas considerações estão no âmbito do arbitrário e moral, ou seja, do que se resolve ser regra sem qualquer parentesco com a necessidade ou com a identidade obtida por sucessivas depurações. A provar a não naturalidade dessas supostas leis temos que há períodos de maior e de menor concentração na apropriação de rendas e se uns fossem anti-naturais simplesmente não existiriam.
Nós teremos – e devo desculpas por outro corte abrupto – ruptura em 2014 e fim de um ciclo. A direita deve voltar ao governo central brasileiro e isto terá as consequências óbvias, porque tem as finalidades óbvias: consequências serão todas as que advêm da maior concentração e finalidades são, basicamente, vender o que faltou: a Petrobrás e um e outro serviço público.
Isso afetará a maior parte da população e inclusivemente as classes médias, que são o móvel desta viragem. A mudança será para pior, mas será realizada com apoio dos que perderão economicamente com ela. Eis o extraordinário para quem supuser racionalidade no processo. A senzala defende a casa-grande.
Lendo o trecho do texto em que você diz que a vítima ignora sua condição, eu me lembrei de algo que sempre me chamou a atenção. No Brasil, existe um lugar-comum que consiste em dizer que “o brasileiro não tem memória”, principalmente no que diz respeito às eleições. Tal afirmação já virou quase que uma verdade absoluta. Naturalizou-se, utilizando-me de suas palavras. Mas eu sempre achei essa afirmação falha, de que ela desfoca a atenção do verdadeiro problema. Na minha visão, a questão não é nem nunca foi de memória. O problema sempre foi de falta de educação político-social e de sua consequência, a ignorância quanto ao funcionamento do sistema. Ora, sempre se privou as classes menos abastadas deste país de acesso às necessidades básicas, dentre as quais, uma boa educação para que todos pudessem exercer efetivamente sua cidadania. Neste país, sempre se deixou o cerne para lá, deixando o povo inteirado apenas dos floreios. Muito por isso, como vai se cobrar memória de um povo, se esse mesmo povo não entende muito bem o ato político que praticou (o ato de votar)? Parece-me que a ideia de democracia para a elite sempre foi a da democracia da Grécia antiga, com a ideia limitada de “cidadão”.
Pois é, Rodrigo, apontaste algo muito interessante.
Esse lugar-comum da falta de memória é algo sem sentido. Ou seja, diz nada ou diz algo diferente do que há.
Faltam instrumentos e informações adequadas para que as pessoas percebam os processos históricos em que se inserem.
Parece-me que uma das coisas mais estrategicamente escamoteadas do povo são as competências dos órgãos e poderes estatais. Há uma confusão conveniente à manutenção do status e à formação oportunista de confusão quando convier.
Não se sabe, realmente, o que cabe a quem, quem faz o quê no Estado e isso é muito bom para a imprensa e para golpistas em geral.
Mas, como você apontou, não se trata de falta de memória, algo em que se insiste precisamente para incutir a noção de que o povo é inapto para exercer a cidadania e principalmente para votar.