Deve haver por aí neste vasto mundo algo mais deformado que a classe média alta brasileira; eu, contudo, não sei onde isto se encontra. Duas marcas são-lhe inerentes e indeléveis: a hipocrisia e a percepção monstruosa do que seja risco.
Esta gente, que brada furiosa contra corruções que vê por todas as partes, sem saber bem de quê se trata ou como ocorra, é ávida pela exceção, pela relativização da regra, pela vantagem de algibeira, pelo argumento impertinente. Enaltece o estrangeiro precisamente pelo que ele tem de diferente deles e pelo que são incapazes de cumprir.
Tenho o infeliz encargo de administrar o prédio onde moro, porque exige muita paciência e dar explicações a gente que não admite ser contrariada. Prédio pequeno e antigo, com bons apartamentos à moda meio antiga; bom tamanho e bom acabamento, coisas de muito antes do fetiche do piso em porcelanato e de depois do bom gosto do piso em mármore.
No prédio, há um salão de festas na cobertura, onde também está uma pequena piscina. De regra, o salão está à disposição dos moradores, desde que o solicitem previamente e se comprometam a deixá-lo, depois, nas condições de limpeza em que o encontraram. Ou seja, o salão mantém-se fechado e a piscina é área sempre aberta.
Esta sala é nada mais que um espaço retangular de aproximadamente 250 metros quadrados, com mesas e cadeiras, dois banheiros e um pequeno balcão em granito e uma pia. É agradável; claro e bem ventilado. Não é adequado para banquetes ou grandes festas, evidentemente.
Eis que uma família moradora pede o salão para uso no domingo, das dez da manhã às dez da noite. Pede na quarta-feira, ou seja, com grande antecedência, e eu firmo a autorização e a ponho no elevador, no quadrinho de avisos, como de regra se faz para que os demais fiquem avisados.
Na sexta-feira, o porteiro procura-me com a cara meio contrariada e diz: a senhora fulana, do apartamento tal, quer falar com o senhor. Era a senhora da festa do domingo e perguntei se ele sabia o que ela queria. Disse-me que queria a chave do quartinho que fica lá na cobertura, acessível por uma porta ao lado da entrada do salão de festas.
Estranhei. Esse quartinho nada mais é que a casa de máquinas do elevador e espaço que tem uma escada de ferro que dá acesso à caixa d´água e, portanto, ao topo do edifício, onde não há muretas de segurança. Era óbvio que não poderia ser atendido o pedido da senhora fulana, tanto por não ter sentido algum, quanto por razões de segurança. Disse logo ao porteiro que não desse a chave.
Como infelizmente havia de ser, a senhora veio procurar-me…, hoje. Seguiu-se mais ou menos um diálogo assim, que que ela é fulana e eu sicrano:
– Bom dia.
– Bom dia senhora fulana.
– O senhor sabe, vou fazer uma festa de aniversário do meu filho, no domingo.
– Sei, sim. O porteiro me disse que queria conversar e me adiantou o que era. Acho que ele lhe disse que não pode usar o quartinho?
– Ele me disse e por isso venho explicar.
– Senhora fulana, permita-me interrompê-la. É uma questão de segurança, basicamente. Sei que a senhora compreende.
– Mas senhor sicrano, é o seguinte: contratamos um bufête. Vêm uma senhora e dois garçons. Eles precisam de um lugar para esquentar as comidas e preparar os pratos. Não dá pra fazer isso no salão! Fica feio!
– Eu compreendo senhora fulana, mas a casa de máquinas do elevador não é lugar pra fazer isso. Pode acontecer um acidente e será uma festa com crianças. Aquilo não é área de circulação. Se acontece um acidente, o condomínio fica exposto a ter de pagar uma indenização de quebrar as finanças.
– Mas senhor sicrano, é tudo gente responsável e não será área de circulação.
– Minha senhora, acidente é aquilo que conceitualmente acontece a despeito de serem todas as pessoas cuidadosas. Não estou dizendo que seus garçons, seus convidados e as crianças sejam irresponsáveis. Podem ser todos responsáveis e dar-se um acidente.
– Mas senhor sicrano, se não for assim perco a minha festa, o bufête!
– A senhora devia ter pensado nisso antes. Ao invés de achar que a sala de máquinas do elevador seria usada como cozinha.
– O senhor vai estragar minha festa!
– Não sei. Sei que não se pode usar uma área que não é do salão de festas para dar apoio a festa.
– O salão de festas não tem cozinha!
– Sim, não tem. A senhora sabia disso.
– A taxa de condomínio daqui é cara!
– É. São doze apartamentos só. A senhora sabia disso também antes de alugar o apartamento.
– Não tem jeito então?
– Não, não tem jeito. Espero que compreenda. Seria leviano e irresponsável se consentisse nisso.
– Mas meu filho onde o pessoal do bufête vai preparar as comidas? No meio do salão? Isso tá errado!
– Minha senhora, antes de contratar um bufête ou qualquer outra coisa, a senhora devia ter feito pensando no espaço disponível. Não devia contar com a sala de máquinas do elevador para isso. Isso é questão de segurança! E a sala de máquinas não é parte do salão de festas.
– Vai ficar mais caro pro condomínio, senhor sicrano! Vão ter que fazer na cozinha do meu apartamento e usar o elevador pra levar e trazer do salão de festas.
– Tudo bem. Pagaremos todos os custos adicionais da sua festa…
– Não tem jeito, então?
– Não. Não tem jeito. E não é um capricho. É que a sala de máquinas não é parte do salão de festas. Não sou irresponsável e isso pode dar problemas, acidentes. Espero que compreenda.
– Tchau.
– Até logo, dona fulana…
Este diálogo aconteceu. O que tem de formal e aparentemente falso deve-se a ter sido assim mesmo. Fui formal e preciso; não me alongo nestas ocasiões e uso de linguagem que beira o artificial. De certa forma obriguei minha interlocutora a também ser meio formal. Não no foi todo o tempo. Houve falas que extravasaram a raiva dela e a vontade da exceção.
Isso é um nada. Vários nadas desses são um retrato do caráter dessa gente. A gente que grita, que agride, que se indigna com corruções e outras coisas de moral de pequenos burgueses. Os indignados que pedem para instalar uma cozinha ao lado das máquinas do elevador…
Quem não tem histórias desse tipo para comentar? Viver em condomínios de classe média é um desafio, particularmente em Recife, cidade onde ainda impera o imaginário da casa grande.
Conheço uma médica que quer ir embora do Brasil para a Europa, porque não aguenta mais “tudo isso”, mas só vai se puder levar a empregada.
Durante muito tempo esse tipo de gente me deixou indignada. Atualmente, tenho me sentido triste; acho que estou perdendo a esperança, ou estou simplesmente cansada. E, pelo que vejo entre os jovens classe média que conheço, não são diferentes em nada de seus pais.
Arthemísia, hoje não me indigno, nem me surpreendo. Seria um luxo surpreender-se com isso.
Vejo-me cansado; fatigado destes tipos e destes convívios. Principalmente por perceber – como disseste – que a coisa se replica à perfeição nos que veem aí.
Espero que não tenhamos que fugir pra outro lugar, baby,kkkkkk.
Andrei, li em algum site (não lembro qual) que você trabalhou no TRF5, é certo? Trabalho lá há um tempão, mas não lembro de você.
Mas, mestre… Você atrapalhou a festa de sua vizinha. KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK. Imagine que algum dia num prédio no Catolé – não faz muito tempo – houvesse gentes que ouviram In my time of dying no que foi possível aumentar de um som potente. E não era no salão de festas. KKKKKKKKKKKKK
Kkkkkkkkkkkkk. Rapaz, pelo menos não foi na área comum.
Mas, o som estava bem comunalizado.
Arthemísia, estive alguns meses nesse tribunal mesmo. Faz muito tempo.
Viver em condomínio não é para qualquer um. Não sei se é porque, à medida que envelheço, me torno menos tolerante ao barulho, e barulho é algo comum em qualquer condomínio, por isso me mudei de um apartamento e hoje moro em uma casa.
Barulho é marca registrada dos condomínios. Salão de festas deveria ser proibido, já que é espaço residencial. As festas infantis são incríveis máquinas de ensurdecer crianças. Não sei porque fazem festas se as pessoas não podem conversar por causa da altura do som. Estou quase admitindo a ideia de ter que sair de Recife após a aposentadoria.