Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

A palo seco, de João Cabral de Melo.

1.1.
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.
1.2.
O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;
é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.
1.3.
O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.
1.4.
O cante a palo seco
não é um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;
é um cante que exige
o ser-se ao meio-dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia.
2.1.
O silêncio é um metal
de epiderme gelada,
sempre incapaz das ondas
imediatas da água;
A pele do silêncio
pouca coisa arrepia:
o cante a palo seco
de diamante precisa.
2.2.
Ou o silêncio é pesado,
é um líquido denso,
que jamais colabora
nem ajuda com ecos;
mais bem, esmaga o cante
e afoga-o, se indefeso:
a palo seco é um cante
submarino ao silêncio.
2.3.
Ou o silêncio é levíssimo,
é líquido e sutil
que se ecoa nas frestas
que no cante sentiu;
o silêncio paciente
vagaroso se infiltra,
apodrecendo o cante
de dentro, pela espinha.
2.4.
Ou o silêncio é uma tela
que difícil se rasga
e que quando se rasga
não demora rasgada;
quando a voz cessa, a tela
se apressa em se emendar:
tela que fosse de água,
ou como tela de ar.
3.1.
A palo seco é o cante
de todos mais lacônico,
mesmo quando pareça
estirar-se um quilômetro:
enfrentar o silêncio
assim despido e pouco
tem de forçosamente
deixar mais curto o fôlego.
3.2.
A palo seco é o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio;
é cantar contra a queda,
é um cante para cima,
em que se há de subir
cortando, e contra a fibra.
3.3.
A palo seco é o cante
de caminhar mais lento:
por ser a contra-pelo,
por ser a contra-vento;
é cante que caminha
com passo paciente:
o vento do silêncio
tem a fibra de dente.
3.4.
A palo seco é o cante
que mostra mais soberba;
e que não se oferece:
que se toma ou se deixa;
cante que não se enfeita,
que tanto se lhe dá;
é cante que não canta,
cante que aí está.
4.1.
A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;
a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.
4.2.
A palo seco cantam
a bigorna e o martelo,
o ferro sobre a pedra
o ferro contra o ferro;
a palo seco canta
aquele outro ferreiro:
o pássaro araponga
que inventa o próprio ferro.
4.3.
A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.
4.4
Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:
não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.

3 Comments

  1. Davi

    Curioso, também estou lendo João Cabral, a “antologia poética”. Esse autor é muito bom. Não gosto muito de poesia, mas ele é muito bom.

  2. andrei barros correia

    Davi,

    Eu sou amante da prosa. Até demais. Tenho dificuldades com a poesia, não rejeição, mas dificuldades. É como se buscasse sempre o amparo das formas ou, talvez, da linearidade narrativa. Ou do metro, sim, pode ser uma paranóia do metro…

    Em João Cabral de Melo, essa dificuldade persiste, mas é menor. Vejo a perfeição formal e material. Consigo disciplinar-me mais facilmente, ou seja, aceitar a disciplina na leitura sem ser apenas um esforço metodológico.

    Sei da necessidade de disciplina, mas sei também que a narrativa fluída seduz porque demanda menos. Por isso, percebo que há textos sedutores apenas pela facilidade e outros que são consagrados apenas pela dificuldade.

    Uns, são difíceis porque são nada ou quase nada. Outros, não são difíceis, mas são obscuros e volteiam em torno a si mesmos.

    Outros, ainda, pedem atenção e, se a dermos, retornam imensamente. Assim são os poemas de João Cabral de Melo Neto. É preciso lê-los atentamente, a falar. Ler e buscar o metro e o ritmo. Ler e ouvir.

    Feito isso, chega-se à faca só lâmina…

  3. Davi

    Pois é Andrei, João Cabral demanda atenção, precisa-se ler em voz alta, com ritmo, pois tem ritmo e métrica e é exatamente como você descreveu, a poesia dele nos retorna.

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