Não é simples o sistema que subjaz ao estado de aceitação pelas massas de medidas que pioram evidentemente suas situações social e econômica. Há uma narrativa bem construída com técnicas consagradas de engenharia psico-social, que prepara o terreno para que as pessoas – em maiores e menores proporções, consoante suas porosidades à imprensa corporativa – aceitem o saque do pouco que têm.
Apenas o discurso das medidas amargas necessárias para que se abra uma era futura de bonança não é suficiente para que alguém aceite perdas drásticas. É preciso que uma narrativa mais sutil instile nas camadas psíquicas menos dependentes de linguagem a tendência a aceitar o discurso da necessidade do que é contra si mesmo.
Esse papel cabe à culpa, a face reversa do mérito. Se Deus dá tudo e tudo retira, o mérito dá e a culpa retira. Ou, mais precisamente, a culpa permite que se aceite a retirada e o seu discurso de justificação. É o alicerce pouco consciente – mas já conformado em linguagem, evidentemente – sobre que serão depostas e assimiladas as camadas narrativas da necessidade de sofrer.
É sofrer a expiação de um mérito que a sinceridade mais interna – aquela que aqui e acolá revela-se involuntariamente – sabe inexistir. O mérito que pouco é mais que inércia, que é muito próximo a acaso ou que é realmente mérito na detenção da arte de tripudiar, esse mérito o meritocrata tem contato com ele, intimamente, dentro de si mesmo. Nessas ocasiões, não há mentiras.
Essa sinceridade – digamos interior, por falta de palavra melhor – entre em choque com a narrativa cuidadosamente arrumada em linguagem, a que se projeta. Desse choque surge a culpa e estão dadas as condições para a aceitação da piora, quase como uma penitencia ritual.
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