Ninguém se lembra, evidentemente, por questões cronológicas, mas alguns conhecem o episódio. Dos maiores golpes de enriquecimento ilícito e corrupção generalizada da história recente foi a lei seca nos Estados Unidos da América. A partir de um surto de moralismo destituído de quaisquer razões, criou-se esquema que enriqueceu vários grupos mafiosos e vasta porção dos agentes do Estado.
Proibir o que muitos querem é o caminho mais curto para aumentar a oferta do proibido, a custos maiores e qualidade menor, e para gerar lucros enormes para os vendedores de coisas ruins que não pagam impostos. Tem a vantagem adicional de gerar renda para os fiscais da lei, que recebem para não fiscalizarem o que, de resto, seria praticamente infiscalizável.
O exemplo da lei seca dos EUA nos princípios do século XX não se aparenta muito a coisas a se tratarem de passagem aqui, exceto pelo moralismo que foi seu motivo determinante.
O moralismo é aquilo que a plebe – não se trata de uma questão de dinheiro, sempre é bom dizê-lo – usa. Não conhecendo honra, vai com moralismo. Achando rigoroso demais algo que supostamente é geral e abstrato, como a lei, vai de moralismo. Tendo sido instruída para achar que não há escolhas políticas e econômicas, vai de moralismo.
Hoje, nesta obra de Satanás que é a sociedade brasileira, o mais deformado e longevo esquema de rapinagem e dissimulação que já se dispôs, o moralismo tornou-se motivo primeiro de tudo e ponto central de discussão. Chegamos ao ponto de um lugar-comum ter-se tornado mais que comum: sempre se fala que algum fulano é do bem ou não é. Nem Jó foi alvo de experimentos assim tão avançados, deve-se convir.
Sabe-se de saber sabido – e perguntar de fontes e origens é entrar no argumento em círculos – que certo grupo, componente maioritário de certo partido político, praticou os maiores assaltos aos cofres públicos do país, nos últimos cem anos. A brincadeira foi muito além do contratar obras e serviços mais caros que a realidade e receber uma gorjeta do contratado.
Tratou-se de vender serviços públicos – e não somente as concessões para prestá-los – de vender empresas públicas a preços baixíssimos e com financiamentos amistosos de bancos públicos. A brincadeira foi muito bem feita e implicou, também, na assunção prévia pelo vendedor de vários custos que poderiam ser incômodos para os compradores.
Há um caso muito bonito e revelador: o Estado do Rio de Janeiro tinha um banco. Particularmente, não acho que Estados federados precisem ter bancos, mas se os forem vender, convinha que fosse uma venda mesmo. Pois bem, o banco do Rio, antes de ser vendido, demitiu metade dos funcionários e o Estado do Rio custeou o alto preço destas demissões. Achou pouco o Estado do Rio, vendedor, e assumiu todo o passivo previdenciário dos reformados do banco e, ao final, vendeu-o por alguns trocados ao virtuoso Itaú.
É prazeroso, para o que escreve estas linhas, conversar com liberais defensores de privatizações bem alfabetizados. Mas, direitista bem alfabetizado, assim como esquerdista, é coisa rara e ficamos na infeliz situação de poder conversar pouco, o que é lastimável. O caso é que não há, conceitualmente, com relação à maioria das atividades, quaisquer problemas em passá-las à iniciativa privada e fiscalizar a prestação dos serviços.
Não é recomendável, por outro lado, passar algumas atividades para a iniciativa privada porque implica simplesmente renúncia à soberania e ao poder de decisão. É o caso de pelo menos um banco e de uma companhia de exploração de petróleo.
Problema há em entregar a troco de quase nada muita coisa de valor bem tangível e em setores que poderiam ter boas prestações de serviços desde que se investisse costumeiramente o que se investe antes das vendas. No Brasil, sem mais, não se fizeram privatizações de serviços públicos que são prestados por particulares, cometeram-se crimes e há evidências de subornos imensos.
Há pouco, tornou-se notícia aquilo que já se sabia mas não chegava ao grande número porque os veículos que servem à instrução do grande número trabalham para os beneficiários do esquema fraudulento. Um certo partido político, num certo Estado da federação, recebia subornos constantes das grandes fornecedoras de trens Alstom e Siemens, francesa e alemã, respectivamente.
Quem disse ter havido uma drenagem de aproximadamente cinquenta milhões de dólares norte-americanos do Estado de São Paulo para subornos aos gestores deste Estado foi um dirigente da Siemens, que recebia mais que o devido e devolvia aos imaculados gestores paulistas. O funcionário da Siemens detalhou o esquema dos subornos pagos aos homens de bem, mas nada disso virou notícia ou processo judicial ou investigação do imaculado ministério público.
A seletividade da imprensa majoritária é algo fundamental na criação desta histeria moralizante que se esquece dos maiores assaltos ao Estado brasileiro. Esta imprensa fala para as classes médias, sejam baixas, médias ou altas e o que diz é recebido como verdade absoluta, precisamente porque é vertido nas tintas moralizantes que consistem no básico do pensar médio-classista.
Tanto são eloquentes as acusações aos opositores da imprensa, quanto o silêncio quanto a tudo a envolver certos partidos e certas figuras que contam com a simpatia da imprensa. No meio disto, no meio deste jogo de propaganda mal disfarçada em jornalismo, está o público essencialmente médio-classista, essencialmente inclinado ao linchamento, essencialmente conservador, essencialmente incapaz de reconhecer o quanto não é merecedor do que tem, essencialmente disposto a por o dedo na cara do vizinho por exatamente o que ele faz.
Tornando-se moralista o público, especialmente o médio-classista, o terreno encontra-se arado para semear-se a inquisição de mão única, aquela que levará à fogueira inclusive muitos acendedores de fogueiras. Encontra-se pronto o terreno para a ignorância generalizada da real oposição importante, aquela entre mais ou menos concentração de rendimentos.
Tudo gira à volta da moralidade e os maiores ladrões, os maiores violadores desta moralidade cambiante de botequim, serão os mestres de cerimônia do julgamento de quem faz ou não faz exatamente o que eles mestres de cerimônia fazem à exaustão.
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