Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

A ignorância defendida com eufemismos e rituais.

Os limites do discurso – de uma proposição – encontram-se na linguagem, seu meio, e na impossibilidade do emissor deixar de ser ele mesmo.

O emissor do discurso a favor da burrice, ou seja, da difusão de menos conteúdos que o possível em uma dada circunstância, precisa justificar-se. Isso significa que, no íntimo, ele intui que está a propor a ignorância.

Ele é capaz dessa intuição – percepção imediata e relativamente superficial – porque se reconhece como ignorante, precisamente porque reconhece os menos ignorantes. É capaz de uma comparação, ainda que meio involuntária e imprecisa, enfim. Contrariamente ao que se pensa maioritariamente, as pessoa têm percepção de seus limites, embora suas condutas nem sempre reflitam essa percepção.

O discurso de defesa da burrice apoia-se basicamente em dois pilares: o fetichismo da moda e os rituais formais. Ele afasta-se, como é obviamente dedutível, da matéria, da substância. Não digo que ele apegue-se às formas como um investigador prende-se às regras do método científico. Digo que ele prende-se às formas como aparências, continentes vazios de conteúdos.

Esses dois pilares são, em verdade, um somente, mas bifurcado perto do capitel. O conhecimento específico é substituído por um acervo de lugares-comuns, tirados meio aleatoriamente de um saco repleto deles, que o defensor da ignorância traz sempre consigo. E, esses lugares-comuns variam conforme uma lógica de moda e significam invariavelmente o mesmo: nada.

Eis o caso que me fez pensar nisso. Uma pessoa foi submeter-se a uma avaliação para o trabalho de professor universitário, em uma instituição privada. O teste consistia em apresentar aula a uma banca composta por três avaliadores: um professor da matéria, um psicólogo e um pedagogo. Não vou usar atalhos e direi logo que os defensores da ignorância foram o psicólogo e o pedagogo.

O assunto foi escolhido pelo avaliado, previamente. Havia um lapso de sessenta minutos para apresentar a aula e depois os comentários dos avaliadores. Chegada essa fase, o candidato ao trabalho ouviu do professor que não havia reparos a se fazerem, que compreendera tudo bem claramente e que o assunto fora exaustivamente e claramente abordado.

Em seguida, os profissionais fetiche da dinâmica de seleção de recursos humanos – sim, uso um lugar-comum como quem não quer perder a piada – entram em cena e sacam os comentários previsíveis de seu acervo pré-ordenado. Primeiramente, o mais desconcertante: você não interagiu com os alunos.

Mas, se não havia alunos, era caso de interagir com alunos ficcionais? Ou, por outras palavras, tratava-se de uma encenação meio pueril com personagens inexistentes? Era para fazer um teatrinho com amigos ocultos, uma encenação de escola infantil? Estranha objeção, realmente.

Em seguida, a objeção ápice do fetichismo atual: você não usou o PowerPoint. Vou dizer o que é isso, não porque algum leitor não saiba, mas para ajudar-me a pensar. Isso é um simples instrumento de projecção de slides em alguma superfície. Um instrumento tão instrumental quanto o quadro negro e o giz, tão instrumental quanto a fala, tão instrumental quanto um laboratório e, quem sabe, tão instrumental quanto o silêncio.

Há coisas que podem implicar uma apresentação de slides para serem melhor compreendidas e há outras delas que não. Da mesma forma que há parafusos a demandarem chaves-de-fenda para serem apertados e porcas a pedirem chaves-de-boca para a mesma operação.

E há coisas – geralmente as mais importantes – a demandarem qualquer instrumento, indistintamente, desde que o explicador as conheça! Convém lembrar que Niels Bohr e José Ortega y Gasset não tiveram aulas com PowerPoint, esses dois imbecis, coitados! Deviam ser autodidatas.

Todavia, a objeção informática não se bastava. Tinha que vir com uma explicação, naturalmente tirada do mesmo saco de frases-feitas. O caso é que o maravilhoso meio de projectar slides prende a atenção dos alunos. Sim, esses indivíduos hipopotentes e eternamente infantilizados são incapazes de prestarem atenção a qualquer coisa que não seja exibida mediante slides!

Então, o professor deve prender-lhes a atenção; para quê, pouco importa, contudo. É um espetáculo, evidentemente, o que ser vender e os profissionais a serem selecionados devem ser capazes de produzi-lo. Não se buscam professores, mas mestres-de-cerimônia de conteúdos vazios. Guy Debord não exagerava, portanto.

Ao final, o fechamento como ele deve ser: verdade vinda de quem está preso, mas vislumbra uma pequena réstia de luz e trai-se. A parte moderna da banca avaliadora sentencia: você está perfeitamente adequada a uma universidade federal!

Cabe um pequeno esclarecimento aqui. No Brasil, as universidades federais – públicas – são melhores que as privadas por larga margem, a despeito de algumas pontuais exceções. Essas constituem-se nas universidades publicas não-estatais, o que é fundamentalmente diferente das privadas.

Universidade pública não-estatal é aquela instituição que preza o ensino e a produção científica antes da venda pura e simples de diplomas de licenciados para quaisquer indivíduos que possam pagar-lhes. Neste país de semi-analfabetos em conúbio com deliquentes, produziu-se a falsa dicotomia pura entre pública e privada.

As grandes universidades européias e norte-americanas são todas públicas, embora umas sejam estatais e outras não. Várias universidades no Brasil são entidades públicas não-estatais, como é o caso das universidades católicas. Mas, um número muitas vezes maior é das entidades não-estatais privadas, focadas única e exclusivamente no lucro, voltadas para a oferta de diplomas e de todas as aparências de modernidade vazias de quaisquer conteúdos.

Enfim, se o candidato está destinado e adequado a uma universidade federal – como disseram as guardiãs do templo do fetichismo modista – significa que ele é um bom candidato, mas que aquela instituição quer coisa menor e mais apta a prender a atenção dos adolescentes mal-educados e dispersivos que lá vão ter.

Bem, estranho é o licenciado não compreender, ao depois, a pouca serventia do seu diploma. Os donos das instituições, esses compreendem perfeitamente o que está em jogo e provavelmente licenciaram-se em universidades federais.

5 Comments

  1. Daniel Maia

    Andrei,

    Gostaria eu que o exemplo ficasse limitado a essas universidades privadas, mas, infelizmente, a picaretagem é quase onipresente.

    Certa vez participei do processo seletivo para professor substituto de Direito Previdenciário em uma universidade federal. Ao final, restaram apenas dois candidatos: eu e aquele que até então era o professor substituto.

    A derradeira fase também consistia em dar uma aula, com tema sorteado previamente, à banca examinadora, composta por professores do departamento específico a que pertencia a disciplina, todos profissionais do ramo, detentores de cargos públicos, um deles inclusive meu colega de profissão.

    Ao final de cada apresentação, a banca se reuniu para dar a nota de avaliação. Estava muito seguro, embora sempre cogitasse que o concorrente pudesse se sair melhor, uma vez que já vinha sendo o titular da cadeira.

    Bom, minha surpresa não foi ter sido superado, que isto faz parte. O que me causou espanto foi a justificativa que recebi para ter sido ultrapassado em meio ponto na nota final. É que minha aula tinha sido muito profunda sobre as contribuições para a seguridade social!!!! Fiquei pasmo e, mesmo, indignado.

    Depois compreendi que, na verdade, embora eu tenha tentado ser o mais didático possível e da mesma forma passar um conteúdo completo, o juiz, o promotor e o procurador que me avaliaram não entendiam patavina da matéria. Sentiram-se inseguros e preferiram não mexer na situação.

    Depois disso, nunca mais ousei repetir uma seleção destas. O teatro da vida tem seus limites e eu sou um péssimo ator.

  2. Andrei Barros Correia

    Caríssimo Daniel,

    No teu caso, ocorre o problema da igrejinha das universidades federais. É notável nas seleções para mestrados e doutorados, em que quase sempre aprovam-se os alunos dos professores orientadores, que são precisamente os que avaliam.

    As federais são extremamente corporativas e seus integrantes sentem-se melhores que os restantes e discriminam mesmo os professores que fizeram mestrados e doutoramentos em outras instituições, inclusive de fora do Brasil.

    Discriminam independentemente de serem renomadas instituições, pois que discriminem o sujeito que fez turismo em Buenos Aires em um curso não reconhecido pelo Mec, até compreendo. Mas, indistintamente, seja Coimbra, Bologna, Frankfurt ou qualquer dessas, é estranho.

    No que tu contaste especificamente, e sabendo da tua grande competência técnica, acho que outro fator pesou muito. Os componentes da banca perceberam nos teus conhecimentos uma acusação da burrice específica deles. Aí, meu caro, punem, com os meios e a mesquinharia de que dispõem.

    Grande abraço e anda por aqui, onde és sempre bem-vindo.

  3. O contemplador

    Muito oportuno e bom, tema e texto.

    A propósito, o meu office ainda é um 2003 legalizado e não sei usar o powerpoint; uso somente o word para fazer alguns textos mais simples e sou um razoável usuário do EXCEL, que resolve os meus problemas com contas.

    Em 1983 tive a oportunidade de conhecer pessoalmente um dos maiores pensadores práticos da hidrologia do mundo, e ídolo dos hidrólogos, o eng. grego/americano Matalas, de quem eu conhecia e aplicava (e ainda aplico) os seus modelos em meus estudos de hidrologia.

    Estava junto a outros 9 colegas brasileiros em Washington DC, nos EUA, no U.S. Geological Survey, em uma sala fechada com uma longa mesa retangular e umas 15 cadeiras em torno, esperando para a chegada triunfal de Matalas, provavelmente acompanhado de um séquito de puxa-sacos, quando entra na sala, sozinho, um cara alto, magro, míope, fumando, gravata desalinhada, agitado e muito simples e simpático.

    Perguntou em inglês se nós éramos os brasileiros e rapidamente entabolou uma conversa sobre os problemas que tínhamos ido estudar nos EUA (ele tinha se preparado para a conversa conosco e não enrolou ou nos fez perder o nosso tempo e também o dele).

    Depois de uns minutos iniciais de conversa já solta disse, “ah, esqueci-me de me identificar, sou Matalas”.

    Naquele clima de estar diante de Deus, ele nos trouxe rápido para o panteão e começamos a conversar sobre problemas de planejamento, de soluções e de métodos matemáticos, e foi aí onde ele deu um inesperado show.

    Esperávamos que ele falasse em modelos matemáticos sofisticados e ele sintetizou, com uma simplicidade angelical, como estava o estado da arte para o que precisávamos (se podíamos diagnosticar o nosso caso usando um simples raios-X não havia necessidade de usar um caro e raro PET scanning ou coisa parecida), sem invocar nada além dos parâmetros estatísticos “média e desvio-padrão”.

    Não usou powerpoint nem giz, fez uns rabiscos em umas folhas de papel (que coletamos e xerocamos como se fossem os pedaços das tábuas de Moisés que se quebraram) e nos passou a tranquilidade entendida pelos bons médicos “de que a clínica é soberana”, ou seja, fazendo as perguntas certas consegue-se chegar ao mais importante que é entender o problema.

    Deveríamos gastar o nosso tempo pensando e tentando perceber a “verdade subjacente” e deixar para um computador fazer as contas de que necessitávamos.

    Implicitamente trouxe-me a lembrança da frase de Deng Xiao Ping: “Não interessa se o gato é preto ou branco, interessa se caça rato”.

    Nunca pensei em ser professor para não ter que me tornar conformista com os rituais, com o teatro e com a obrigação de ensinar os alunos somente a responder, quando ensinar a perguntar parece-me ser tão importante quanto.

    Em um dos bons treinamentos formais que recebi na minha carreira profissional, um palestrante disse que nas instituições existiam CP’s, BDC’s e QSP’s, ou seja, “cabeças-pensantes”, “burros-de-carga”, e “quantidade-suficiente-para” (aquela água que se adiciona ao pó do antibiótico para não tomá-lo seco).

    A maior parte das pessoas nas instituições formais de ensino médio e universitário pouco dedicado é comodamente treinada, infelizmente, para ser BDC ou QSP, e não CP (… um CP em uma turma de alunos pode ser uma ameaça a um professor medíocre).

    Espinoza já denunciava o refúgio na ignorância como um dos maiores pecados das pessoas. Temo a Espinoza…

    Nos meus tempos no ginásio católico no interior da Paraíba havia um coroinha que na missa do domingo, quando mudava um livro de lado conseguia se ajoelhar bem no meio do altar, com uma simetria e uma elegância ritualística bem ensaiada.

    A sua parelha não era tão bem adestrada e se ajoelhava com alguma assimetria em relação ao centro do altar, atraindo um olhar crítico do padre celebrante do sacrifício.

    Fico na dúvida se aos olhos de Deus e de Jesus isso tinha alguma importância…., ou seja, um coroinha assimétrico é capaz de baixar o valor do sacrifício do AGNUS DEI QUI TOLIS PECATA MUNDI?

    Adianto que fiz o treinamento básico de coroinha, em latim, mas nunca fui convocado para jogar no time titular, talvez por conta de não conseguir desenvolver nem aceitar que o mundo fosse simétrico… e também por tentar traduzir e entender o texto em latim que eu estava respondendo ao padre e começar a ter dúvidas sérias se já não estava praticando falsidade ideológica fingindo acreditar no que dizia.

  4. Olívia Gomes

    Daniel,

    Sua frase é perfeita “O teatro da vida tem seus limites e eu sou um péssimo ator.”

    Pensei nisso o dia todo.. me formei na UEPB e não no Teatro Municipal. Também sou péssima atriz.

  5. Andrei Barros Correia

    Caro comentador, tomarei a liberdade de tornar teu comentário em postagem.

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