Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

A ferida de narciso ainda supura.

Em 1654, acabou-se o Brasil holandês. As batalhas vencidas por tropas de índios, pretos, mestiços, portugueses inserem-se num panorama maior, o da Restauração portuguesa. As grandes batalhas – Monte das Tabocas, Guararapes – na realidade, deram-se anos antes da saída total dos holandeses.

Era muito claro para os líderes envolvidos que se retomava o Brasil holandês para reintegrá-lo ao reino. Não havia aspiração a fazer daqueles pedaços de Pernambuco e Paraíba qualquer coisa autônoma. Por outro lado, era claríssimo que essa recém constituída nobreza de espada da terra queria reconhecimento.

No Obelisco da Praça dos Restauradores, há menção às batalhas em Pernambuco, o que evidencia que a expulsão dos holandeses claramente era percebida num movimento mais amplo, como foi a restauração de Portugal com a subida do duque de Bragança, que seria João IV.

Acontece de ser difícil agradar aos que obtiveram glória militar e se alçam à fidalguia pela espada. Por um lado, o reino tinha de reorganizar as finanças e, por outro, relutava em elevar à nobreza mais alta aquela gente bronca que já se enraizava na terra, principalmente no negócio do assúcar.

Essa fidalguia da terra daria trabalho aos governos, pois conservaria por dois séculos a memória do combate e sua altivez seria rastreada historicamente. A segunda metade do século XIX viu a perda total do seu impulso original. Ficariam a arrogância, o espírito de predação e a hipocrisia, traços fortes dos decadentes.

Isso, essa origem da fidalguia local e seu processo de decadência, marcou um espaço geográfico: o Recife. Era uma cidade aberta – reluto em usar cosmopolita – muito por conta de seu porto privilegiado. Havia muitos estrangeiros e, como havia comércio internacional, circulava dinheiro.

A gente local achava-se importante, mas sabia que o mundo ia um pouco além de suas próximas fronteiras. Até antes do golpe militar de 1964, o Recife era, de certa forma, um local florescente e aberto, mesmo que a decadência econômica já cobrasse alto preço.

As décadas de 1980 e 1990, todavia, são de uma caipirice profunda. Misturavam o orgulho dos ignorantes e pobres com a crença no novo mundo liberal: uma tragédia. As pessoas continuavam a julgar-se importantes, mas não sabiam mais que havia o resto do mundo – o resto do mundo é mais que Miami, devo advertir – e não tinham mais conhecimentos históricos.

Essa gente, nessa época, era caricatura de antepassados remotos cuja história não conheciam. Não sabiam de onde viera aquela sua arrogância, aquele seu apreço por símbolos da terra, algo sempre notado pelos de fora. Tornou-se lugar comum celebrar-se a peculiaridade e o orgulho bairrista dos pernambucanos, como se fosse de se imitar essa permanente e vazia referência a si mesmo, sem saber porque.

Não é algo feio ou reprovável em si, mas celebrações autoreferentes como as que se faziam do hino de Pernambuco, nomeadamente nos anos 90, são algo a beirar o patético, dadas as circunstâncias. Súbito, num acesso de modismo, tocava-se e cantava-se o hino a propósito de qualquer coisa ou nada. Ostentava-se a bandeira do estado em roupas, nos carros.

O surto simbolista bairrista, creio que poucos perceberam, era tudo menos alguma manifestação cosmopolita. E o recifense prototípico acredita-se cosmopolita enquanto celebra-se sem celebrar um passado que conheça.

Recordo-me que havia, no Recife dos anos 80, consulados de EUA, França, Alemanha, Japão, Portugal e outros mais. E nunca percebia o sentido que aquilo fazia numa cidade tão provinciana, decadente, pobre e fechada. Porque não fazia sentido algum. Claro que tinha feito, anteriormente.

O contraste é a técnica mor da caricatura e o destaque por excelência do grotesco. Depois de perdido o pólo petroquímico para a Bahia e de ter a Sudene passado a ser emprestadora de dinheiro para criação de bois de papel, a decadência econômica foi brutal.

Mas as classes dominantes permaneciam com a mesma mentalidade e cada vez mais sem história. As demais não poderiam tentar imitar outro modelo senão o que havia. Essa fauna povoava aquele ambiente…

De certa forma, parece voltar a haver vida, de maneira menos arrogante e com mais presença estrangeira. Lastimavelmente, num momento em que a cidade ruma para a inviabilidade absoluta, por impossibilidade de locomoção. Triste retomada…

1 Comment

  1. Carlos

    O Acerto de Contas fechado e tinha esquecido como você é brilhante, Andrei. Hoje cliquei no link. Parabéns pelo texto.
    Abraço.

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