Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

A censura ao silêncio.

As maiores violências são as mais ricas em sutilezas, assim como as maiores amabilidades. Falso paradoxo, pois a sutileza é potência ambivalente e pode ser em ato qualquer coisa, sempre mais que ela realizada mediante brutalidade.

A censura positiva é brutal, ela desce com o peso da estupidez a interditar o que não pode ser dito. A reação à censura positiva é também brutal, pois faz-se da acusação direta da ignorância do censor. Esse ambiente é confortável, pelo que tem de sem-sentido.

Sempre que é proibido dizer alguma coisa há o conforto de saber-se que tanto ela quanto sua proibição não são ameaças a nada. E, além disso, o positivamente proibido existe positivamente. A proibição é amparo ontológico do proibido.

No Brasil – apenas como exemplo – no último período ditatorial, chegou-se a proibir a encenação de Édipo Rei, de Sófocles. A proibição não acabou com a peça, não na apagou da memória dos poucos que a leram, nem aumentou o interesse por ela de muitos que a ignoram. Tampouco reduziu o evidente anúncio dos riscos de achar-se muito potente, risco que correm os príncipes.

Não é preciso muito esforço para perceber que a censura da peça de Sófocles, no contexto das necessidades de defesa da ditadura, foi reação a ameaça quimérica. Em homenagem aos ditadores e a seus empregados censores, inclino-me a crer que foi uma tentativa ingênua de auto-promoção deles, como a dizerem que conheciam o texto tão celebrado. Mas, é claro que o desconheciam…

É preciso investir contra as não ameaças, assim como é preciso matar quem de nada sabe. Assim, joga-se no tabuleiro da brutalidade e todos se entendem bem, com proibições explícitas e reações a elas. Ainda resta a linha de fuga de poder chamar o censor de imbecil… um pequeno conforto vingativo.

Complicado é quando se está proibido ao tempo em que se diz não haver a interdição. Aqui opera-se ao nível da sutileza e deixa-se o controle do que importa para a inércia social que se auto-controla meio involuntariamente. Neste âmbito, as violências podem ser muito maiores, pois há regras, negadas contudo, e desconhecidas pelos que zelam por sua aplicação.

Aqui, o censor é toda pessoa. Ele aplica regras que precisamente desconhece, porque tem que acreditar não estar a serviço do controle. Ora, o melhor controle é aquele que se desconhece como tal, porque assim é mais sincero e mais eficaz. Pratica-se a partir da aceitação ampla, ainda que difusa e mal percebida, de um sistema de justificações recíprocas.

A cumplicidade e a justificação são os principais motores desse esquema, que replica modelos operacionais típicos das relações familiares. A cumplicidade, nunca explícita, é o que leva a tolerar os absurdos dos outros, para contar com a complacência deles quando os absurdos forem os nossos. Essa cumplicidade, contudo, será praticada com reiteradas negações e com afirmações de exercício de rigores punitivos.

Não é de punição que se trata, porém. Esse modelo de controle social difuso é incapaz de punição no sentido próprio do termo, no sentido jurídico portanto. Ele opera entre o linchamento e a permissividade total. Entre os pólos extremos, há gradação de sanções sociais, desde o afastamento discreto até o banimento total.

A justificação é atitude das mais agressivas quando se percebe que é somente uma capa a recobrir um fluxo de mão-única. É a penitência do pecador convicto, a cansar a paciência de quantos não quiserem ser espectadores e atores de uma peça de mau gosto. Este penitente não quer a absolvição, até porque não se crê absolutamente culpado por nada. Ele apenas segue o guia desconhecido porém implacável.

A figura do penitente é profundamente acusadora, pois significa que todos devem assumi-la, à sua vez. Ela insere-se na lógica circular em que o mesmo papel deve ser desempenhado por cada qual, sucessivamente. Todos são culpados e não no são, ao mesmo tempo. É o reino da absolvição, por igualdade de culpas.

Movidas por essas inclinações, as pessoas estão a fazer as perguntas que não são. A pergunta que não é é aquela que tem resposta, de preferência vertida em linguagem científica ou moralista, o que resulta quase o mesmo. O perguntador e o respostador sabem, no fundo, que não há qualquer importância nesse fluxo, mas seguem impávidos e solenes o roteiro pré-estabelecido.

O que está interditado é perguntar qual é a pergunta, porque esse nível de indeterminação poderia levar às portas de alguma sinceridade, o maior de todos os perigos.

O sistema funciona bem porque nove em dez não se negarão a tomar a sério a pergunta que não é. Nove em dez subirão ao palco e oferecerão o triste espetáculo do ator que representa a si mesmo. Um, todavia, não o quererá fazer e a ele não será dado ficar quieto na platéia. A pergunta que não é ser-lhe-á feita e se se negar ao jogo começará a expiar culpas verdadeiras.

Um em dez quererá apenas não ter que mentir, nem ter que falar. Não fora um, não mentiria nem calaria, alegremente daria a resposta que não é e, em seguida, faria a pergunta que não é; o círculo se fecharia e a roda giraria como deve ser. O problema é que não há fora…

7 Comments

  1. Sidarta

    Nao sei se entendi bem o seu texto, mas creio que um perguntador objetivo, mesmo pacifico, é muito mais perigoso para os respondedores habituais do que os 9/10 do extrato de leitores de ideias prontas.

    Na analise estatistica há duas linhas: estudar as coisas do ponto de vista da média e estudar as coisas do ponto de vista das excessoes.

    Lia hoje um texto louvador à cosmologia de conveniencia de Marcelo Gleiser, que tentava explicar o universo mas que tambem se deslumbrava com o poder criador de Deus, e explodiram questoes primarias na minha cabeça.

    Julgo primarias as questoes por dois motivos: se existe um Deus criador é primário questionar o resto e nao ha sentido na louvacao; se nao existe o Deus criador, teologia nao é tema de discussao e é primario continuar a conversa de Gleiser. O meu questionamento tambem é primario porque ainda tenho o apego a buscar a iluminacao.

    O que nao consigo parar de questionar é, talvez como um perguntador chato que corta o barato do êxtase comprado em uma livraria, por que somos mesmo incapazes de nos mover contra a informacao tendenciosa.

    Desconfio de que estou sendo tambem uma vitima do marketing e comecando a ficar como o urubu com raiva do boi, que nao quer morrer, e o urubu tá querendo comer…

    Corro tambem o risco de me fechar em um refugio na ignorancia do que posso rotular como primario, nao mais consumindo informacoes, de nao perceber o essencial pela sindrome da censura ao mediocre… e de afundar o PIB mundial por nao mais comprar as revistas e os jornais que dizem a verdade para os 9/10 das pessoas que votam, que vao ao teatro, às igrejas, às associacoes de classe e aos clubes de golf.

    A proposito dos clubes de golf, mudei de opiniao quando soube da existencia de filosofos-golfistas mas, mudei de opiniao de novo quando fui informado de que o “kit de pratica do golf” custa cerca de 20 mil dolares, que a duracao do nirvana é curta e que, de vez em quando aparece um politico em epoca de campanha e diz “deixa eu jogar com voces”, como fazia aqule menino intruso que morava em uma casinha de ponta de rua, que jogava muita bola e que quando a gente deixava ele entrar na nossa pelada ele estragava tudo, driblando todo o mundo e indo para casa humilde depois de nos ter humilhado no que bem sabia fazer.

    • Andrei Barros Correia

      Pensava, quando escrevi o texto, em muitas coisas e tentava conecta-las. Nem sempre, contudo, a conexão de coisas diferentes resulta muito coesa e fica a implicar vários pressupostos não explicados.

      Por outro lado, se os pressupostos forem todos analiticamente abordados, o texto pode ficar demasiado cansativo.

      O caso é que se esquece que a sutileza está por trás das grandes violências e amabilidades mais que a brutalidade explícita.

      Outra coisa é que os meios inerciais de controle social são mais poderosos que os meios explícitos e evidentes.

      Por fim, pensava no grande teatro que são as relações. Nisso, pensava mais especificamente nas relações no ambiente de trabalho. As perguntas que se fazem não visam a serem respondidas, mas a que o teatro continue e a obter confirmações.

      O sujeito que pergunta o que pode ser feito para melhorar alguma situação não quer buscar solução alguma, quer apenas feedback no teatro circular. E também não aceita o silêncio de quem encheu o saco de fazer de conta que há perguntas e respostas e, mais, ações.

    • Elizandra

      Olá Andrei, tudo bem?

      Gostaria de saber como faço para entrar em contato contigo, estou com uma pauta sobre democracia e direito de voto e gostaria de saber se tens interesse em participar de uma entrevista.

      • Andrei Barros Correia

        Elizandra,

        Enviei-te um e-mail.

        Andrei

  2. Maria josé

    Fico com o primeiro parágrafo .as maiores violências são as mais ricas em sutilezas,assim como as maiores amabilidades.abraço

  3. Rafael Jefferson de Oliveira

    O que eu entendi do texto é que você usou muitas palavras bonitas e pouco “chegar ao ponto”. E não adianta de me chamar de ignorante ou coisa parecida. Está conexo mais muito confuso.

    • Andrei Barros Correia

      A confusão pode vir da falta de silêncio. E a chegada a qualquer ponto, assim sem mais, pode ser só o ponto.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *