Em 1953, servindo-se da usual inteligência, Vargas demite Jango do cargo de Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio. Em seu lugar assume Hugo de Faria, ainda que relutante. Goulart havia se tornado, muito rapidamente, alvo preferencial dos ataques de Carlos Lacerna, dono do jornal Tribuna da Imprensa. Na verdade era alvo de Lacerda, do Globo, do Estado de São Paulo e dos Diários Associados.
Toda a ira de Lacerda – muitíssimo agressivo – focava-se na realização de coisas triviais, considerando-se a legislação existente então, que devia ser cumprida. O ministro atuou como negociador em greves de largo alcance, ao invés de simplesmente mandar reprimi-las sumariamente, como era hábito anteriormente.
Algumas posturas de Jango eram heterodoxas, mas nada que alguém inteligente pudesse julgar ameaçadoras ou ilegais, ou mesmo indignas do cargo. Ele era acessível; recebia interlocutores de sindicatos de trabalhadores e patronais sem cerimônias, o que é muito próprio de pessoas dotadas de alguma honorabilidade.
Nisso fugia do protótipo da auto-concedida importância por meio da distância e do culto a liturgias sem sentido. Essa forma de agir está entranhada na mentalidade do brasileiro como o signo da dignidade governamental. Assim, quanto mais uma autoridade é capaz de fazer alguém esperar à toa, quanto mais solenidade põe na audiência que concede, mais respeitável é, segundo o código não escrito de status social.
Talvez alguns percebessem isso apenas como traição de classe, pois, no fundo, o ministro não subvertia coisa alguma. Ele nunca propôs a estatização dos existentes meios de produção, nem a superação do sistema de classes, apenas que os trabalhadores tivessem um mínimo a lhes permitir alguma dignidade, coisas que levariam ao fortalecimento do mercado interno e consequentemente a nascente indústria nacional.
Fato é que Getúlio percebeu duas coisas: primeiro, que João Goulart já obtivera bastante estima popular; e, segundo, que se permanecesse só teria desgastes, pois era possível o ministério seguir a mesma linha sem ele. Imagino que nos princípios de 1953 Getúlio já antevia o que ia acontecer e preservou Jango. Não foi pouca coisa, pois a atitude provavelmente livrou o pais de uma ditadura dez anos mais longeva que a instalada em 1964.
Os pontos centrais da reação a Getúlio eram os seguintes: o petróleo, que sondagens norte-americanas insistiam em negar presença no Brasil e o processamento de minérios, principalmente de ferro. Ou seja, era – como sempre é – uma questão entre nacionalismo e entreguismo, não qualquer coisa entre esquerdismo e direitismo.
Seria preciso nível altíssimo de estupidez – até para padrões de leitores de Veja – para supor Getúlio um esquerdista. O que leva um homem naquelas circunstâncias a ser percebido como esquerdista é o padrão dominante de exploração selvagem, algo que cega inclusive os pequenos serviçais que vivem das migalhas caídas esporadicamente de mesas muito altas.
No tempo e lugar desses acontecimentos, nenhum país escapou da situação de reduzido à periferia do vizinho mais ao norte, enviando-lhe em vagas sucessivas todos os recursos naturais e resultados do trabalho de suas gentes. Uns resistiram mais, outros menos, mas todos tiveram a mesma sorte. Claro que o Brasil não tinha tantas diferenças além do tamanho.
O que, de certa forma, causa estranheza é a virulência e a linha de ação escolhidas. O rumo trilhado por Carlos Lacerda e semelhantes incluiu calúnia, difamação, injúria, moralismo rasteiro, tudo bem temperado por absoluta ausência de fatos. A opinião pura e simples vinha embalada em verdade moral absoluta. O que Lacerda dizia, só podia mesmo ser dito por escrito, que se fosse dito ao ofendido, mereceria uma bofetada em resposta.
Na época, o discurso atingia menos pessoas que hoje, pela óbvia razão de que havia menos receptores. Curioso paradoxo: o modelo levado adiante por Vargas aumentaria as classes médias baixas, que são precisamente o público mais vulnerável à conversa da corrupção avassaladora e iniciada ontem. Ou seja, o bombardeio mediático, embora de intensidade maior que hoje, gerava menos efeitos.
Por outro lado, isso foi ruim porque o golpe precisava de mais que imprensa, precisava de militares. A Marinha de Guerra e a Força Aérea eram historicamente entreguistas, golpistas e contra Getúlio. Mas, o exército estava bem dividido entre nacionalistas e entreguistas. Falo aqui, sempre, do oficialato, que a situação entre praças era diferente, mas resolvida pela hierarquia.
O golpe materializou-se em reunião ministerial havida depois do atentado da Rua Toneleros. Em frente da casa de Lacerda, na Rua Toneleros, dois homens atiraram contra ele e contra seu guarda-costas, o Major da Aeronáutica Rubens Vaz. Lacerda feriu-se no pé, o Major foi morto.
A Força Aérea constituiu uma comissão própria de investigação – ilegal – chamada A República do Galeão e acusou três pessoas: Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio, Alcino João Nascimento e Climério Euribes de Almeida.
Desses, Alcino foi condenado a 33 anos e cumpriu 23. Escapou de duas tentativas de assassinato e sempre negou os fatos como eles foram consignados no inquérito. Gregório e Climério foram condenados, repectivamente, a 25 e 33 anos de prisão. Ambos foram assassinados na penitenciária… O inquérito concluiu-se após um taxista dizer que conduziu os dois atiradores. Preso um deles, disse que fora contratado pelo outro. Presos os dois, disseram que foram contratados por Gregório.
A eliminação física de opositores políticos somente funciona se for em massa. Getúlio sabia disso, obviamente. Seria mais estúpido que Lacerda mandar matar Lacerda. Duas coisas são prováveis: ou Gregório contratou os pistoleiros, em postura de mais real que o rei, ou o atentado foi contratado pelos golpistas. É notável que dois atiradores profissionais tenham alvejado um homem – o sem importância – nas costas, mortalmente, e o outro no pé, quando estavam lado-a-lado…
Foram dezenove dias do atentado ao desfecho do golpe. Uma reunião de gabinete foi convocada, após as conclusões do inquérito da República do Galeão. Nela, Zenóbio, o ministro da defesa, disse a Getúlio que devia renunciar, que era o exigido por um grupo de generais e civis. Convencionou-se, na reunião de 24 de agosto de 1954, que Getúlio pediria licença da Presidência da República, a partir de sugestão de Amaral Peixoto.
Acontece que os golpistas acharam a licença pouca concessão e um grupo de generais foi ao Catete, por volta das seis ou sete da manhã, exigir a renúncia. Getúlio já imaginava o que estava em curso e preparava a mais dramática e genial jogada da política brasileira. Ele já havia encomendado a Carta-Testamento a José Soares Maciel Filho, o presidente do BNDE e quase secretário pessoal do Presidente. Fez algumas revisões e reparos no texto.
Dois dias antes, o Presidente Getúlio havia recebido uma carta de oficiais da Força Aérea exigindo sua renúncia e respondera que: Daqui só saio morto. Estou muito velho para ser desmoralizado e já não tenho razões para temer a morte.
Getúlio deu um tiro no peito, na manhã de 24 de agosto de 1954. Havia três exemplares da Carta-Testamento: um na mesa à cabeceira da cama, um no cofre e um entregue a Jango dia antes, em envelope lacrado.
Os golpistas não obtiveram um vencido, uma renúncia que seria confissão de culpa e traição ao povo, um governo manso e pacífico; obtiveram um cadáver dificílimo de sepultar.
O caixão com o corpo de Getúlio teve de ser embarcado em avião da Força Aérea para levá-lo a São Borja. A multidão era imensa no aeroporto Santos Dumont e a melhor forma de dispersa-la que os oficiais da Força Aérea conceberam foi atirar contra o povo, com o saldo de um morto e vários feridos.
Jango fez um discurso fúnebre em São Borja. Deslacrou a carta a si destinada depois e deve ter percebido o tamanho da complicação: era destinatário do único de três exemplares, único pessoalmente destinado. Pode estar aí alguma explicação do seu afã de evitar derramentos de sangue quando ele próprio foi vítima do golpe.
Quatro personagens emergem a partir de então, uma delas efêmera demais: Café Filho, o vice-presidente mais ou menos golpista; Carlos Luz, o presidente da Câmara efusivamente golpista; Henrique Teixeira Lott, o Marechal apegado à legalidade; e Nereu Ramos, o presidente do Senado da República, legalista, talvez por falta de vontade de ser golpista.
O contra-golpe de Lott é dos episódios mais espetaculares da história do Brasil e a personagem interessantíssima.
Excelente rememoracão dessa parte da historia real do Brasil.
Lembro-me ainda das noticias nos jornais sobre o suicidio de Vargas. Naqueles tempos a UDN era bem mais influente do que a sua reencarnacao atual, o PSDB, e ouvi o meu pai me contar estorias sobre como os “caciques da UDN” faziam uma eleicao.
Grande justificativa para que 64 não terminasse em um banho de sangue. Jango havia preparado todo um aparato para se contrapor ao golpe e seria fácil fazê-lo diante da desorganização e do pequeno número de tropas revoltosas no dia 1 de abril. A adesão dos outros chefes militares só ocorreu após a omissão de Jango.
Sérgio,
Já pensei muito nisso e já achei que era possível reagir com êxito. Realmente, Lott tivera, antes, a grande idéia de tirar os golpistas dos comandos efetivos. Porém, em 64, muitos tinham comando.
É verdade que Brizola contava, aparentemente, com o comandante militar do Sul.
Há, todavia, um fator determinante. Havia navios dos EUA fundeados ao largo do Rio de Janeiro, inclusive um porta-aviões.
Eles não hesitariam.
Ao contrário do que se pensa, na época o Brasil estava mais dependente de fatores externos que hoje.
Os vasos de guerra estavam no Brasil “em treinamento” (kkkk). Também havia um navio-tanque com gasolina para os revoltosos (nem precisou, deu meia volta). Transcrevo do livro ditadura envergonhada de Gaspari: “Jango pareceu estar a um passo da vitória (…). Para que pudesse vencer nos termos em que seu “dispositivo” colocara a questão, era indispensável que se atirasse num último lance de radicalismo, límpido, coordenado e violento (…). Precisaria golpear o Congresso, intervir nos governos de SP, MG e GB, expurgar uma parte do oficialato das Forças Armadas, censurar a imprensa, amparar-se no “dispositivo” de 20 mil homens, nos sargentos e nos sindicatos”. Ou seja, poderia haver uma guerra civil.
Em 1962, Jango foi aos EUA. Entrevistou-se com Kennedy, discursou no Congresso e foi convidado a fazer duas visitas curiosíssimas.
Ele foi levado a conhecer o comando estratégico central, em Nebraska. O local onde se comandam os mísseis balísticos e a frota de B52, ou seja, de onde o apocalipse pode ser iniciado.
Dali, em um helicóptero, com o general Power, foi levado a conhecer um míssil Atlas, num silo. O general discorria animado sobre os efeitos do missíl. Em uma cidade como Moscou, morreriam 500 mil no impacto, tantos mil tantas horas depois, em Pequim morreriam 700 mil no momento e assim por diante.
Imagino que Jango compreendeu perfeitamente essas visitas a princípio sem qualquer sentido…
Perfeito. Deram o recado do que viria. Recentemente, houve a ameaça de invasão à tríplice fronteira em Foz do Iguaçu e a base no Paraguai teria este objetivo.
Isso. Ainda bem que hoje, eles se encontram muito ocupados em outros lugares.
De certa forma, a próxima guerra na Síria e no Irã e a iminente falência financeira dos EUA significarão paz para nós. Eles não terão como patrocinar a instabilidade por aqui.
Talvez por isso as viúvas da UDN andem com tanta pressa em dar o golpe.
O nobre senador do DEM/PI Heráclito Fortes era uma das grandes fontes da embaixada dos EUA em Brasília.
http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI4900408-EI7896,00-WikiLeaks+Heraclito+Fortes+quis+armar+Pais+contra+Venezuela.html