Duas atitudes desviam a percepção geral do instinto de rapina, de cumplicidade e de preservação que animam os passos das classes médias e altas, notadamente no seu relacionamento com os poderes públicos.

A primeira é o moralismo que repete à exaustão que falta ética por todo lado. Essa ladainha já elegeu um presidente, no Brasil, Jânio Quadros. Ele, em campanha, não se propunha a qualquer coisa além de falar em limpeza moral e seu símbolo, significativamente, era uma vassoura! Grande homem, tentou um golpe até bem pensado, apenas estava no país errado. Foi presidente por sete meses.

De minha parte, tenho imensa desconfiança por quem faz todos os raciocínios girarem em torno à moral. Deve ser anacronismo meu, mas acho que isso é um tremendo plebeísmo imoral. Fica a parecer que é uma horda de pusilânimes querendo aumentar o preço do suborno a que visam.

Outra vertente do disfarce são as formas. A glorificação de leis, regulamentos, procedimentos, instrumentos de controle, instrumentos para controlar os instrumentos anteriores, prazos, padronização de documentos, formulários e coisas desse tipo. A elevação dos meios a fins, em suma, e o divórcio mais evidente entre o se declara visar e o que se pratica. Aqui, o mote é o desapreço pelas regras e a contínua necessidade de mais delas.

Na essência, tudo pode continuar no seu curso habitual, mas deve se submeter a um processo formal, seja ele judicial, seja administrativo. Ou seja, qualquer problemática é reduzida ao nominalismo e tudo é possível, a depender do nome porque as coisas atendam. Levada essa postura a extremos, chega-se ao dia em que alguém mais sério quer enterrar o cadáver do irmão e ocorre o rompimento.

O Brasil da simbiose público privada aprecia deveras glorificar a banalidade jurídica que atende por Constituição. Banalidade porque é algo comum e não merece, no fundo e ao final das contas, o respeito que seus trovadores afirmam ter por ela. Pois bem, esse texto propôs – ou determinou, como se queira entender – princípios que devem orientar a administração pública. E, coerente com as mentalidades de seus genitores, deixou os traços da ambiguidade que possibilita a permanência da rapina.

A constituição pretende que a esfera pública conheça a legalidade e a moralidade, como se fossem coisas distintas. A consagração de um princípio da moralidade é muito celebrada, de maneira quase unânime. De minha parte, vejo o sinal claro da tolice e da vilania nessa afirmação do princípio da moralidade, que permitiu, na verdade, desdobrar a ilegalidade em dois graus distintos de gravidade, em benefício de quem a pratica.

Ao contrário de constituir algum reforço jurídico no sentido da probidade pública, consistiu na inserção de um âmbito extra jurídico que se tornou em válvula de escape para inúmeras rapinas públicas. Um fulano que seja apanhado a violar o interesse público apressar-se-á a dizer que, no máximo, cometeu um deslize a infringir o princípio da moralidade mas, não o da legalidade. Fracionou-se em graus quantitativos algo que é qualitativamente indivisível: a legalidade.

Ora, a moralidade está subjacente a todas as regras jurídicas, portanto sua afirmação como algo positivamente jurídico é mais que uma redundância, é uma inutilidade. Serve apenas a permitir que se descaracterize a atuação ilegal como algo menor, ou seja, imoral. A coisa pública não precisa de complicadores repletos de subjetividade, como é a moralidade. Seu âmbito formal delimita-se na legalidade, que vai até à investigação dos motivos determinantes e dos fins visados, mas sem precisar recorrer a noções pré-jurídicas.

Todavia, não é coisa de se estranhar em um país cuja cultura jurídica eleva às nuvens figuras como a de Rui Barbosa, um homem que participou ativamente da primeira onda devastadora de falências na República, quando era ministro da fazenda. Rui parece ter encantado-se com as maravilhas da atividade bursátil e as potencialidades da criação de dinheiro falso a partir da emissão de dívidas de companhias de nada. Muitos quebraram e alguns dizem que ele saiu rico. Não obstante o desastre econômico que comandou, nunca deixou de subir à tribuna do Senado Federal para pregar a moralidade. Cícero, pelo menos, nunca foi ministro da fazenda!