O que existe mais claramente é o que se precisa negar mais veementemente. É aquilo que deve ser contraditado a todo tempo, insistentemente.
O que há mais evidentemente é o pensamento limitado, balizado, turvado, condicionado. As margens de variações são tão estreitas que as pequenas diferenças, vistas de mais distante, anulam-se. As pequenas variações dão-se em um campo delimitado previamente e não consistem em qualquer diferença qualitativa.
Os grupos humanos são guiados e vivem segundo roteiros seguidos involuntariamente. A liberdade de ação e de pensamento é, portanto, um mito, que vive do seu contrário, a não-liberdade absoluta. Por isso mesmo é que se ouve e se repete sempre que se tem liberdade, para que se viva sem ela e sem perceber sua ausência.
A supressão da liberdade de pensamento, aqui tomada como potencialidade humana, é obra das mais grandiosas já realizadas. Sim, porque é quase inabalável e pode seguir triunfante mesmo na presença de todos os elementos que supostamente a ameaçariam.
No ambiente do pensamento único, dos hábitos, das emergências, do trabalho e do consumo, não há problemas na existência e na disponibilidade das informações, porque elas não serão usadas nem relacionadas. Elas serão apenas um adorno, preferido por uns a outros tipos de adornos.
Ela, a informação, será um bem consumível como outro qualquer e, portanto, perderá seu carácter real e manterá apenas a aparência. O fulano que adquire alguma informação ou ares de pensador é uma variação tipológica social essencialmente igual ao outro fulano que, aos ares pensadores prefere ostentar um Porsche.
Todos os fulanos cabem em uma tipologia social previsível e pré-ordenada em todos os aspectos da vida exterior. Haverá guiões para todos os grupos, inclusive com as exceções aparentes que permitem àlguns sentirem-se diferentes, muito embora a própria diferença seja parte do que os iguala a todos.
Falo em aspectos da vida exterior porque os da vida interior terão desaparecido. A vida interior volatiliza-se em superficialidade de comunhão de despudores privados. Na medida em que mais e mais detalhes pequeninos de intimidade são compartilhados avidamente, menos particularidades e menos percepção há.
A vida interior, como percepção das externalidades e das interioridades ao mesmo e a todo tempo, dilui-se a tal ponto que se anula na comunhão de trivialidades sem consciência de si próprias. É um estado de dormência em que se vive, em um presente contínuo e sem portas de saída ou de entrada.
Não é que não se possa parar para pensar – até porque pensar não implicar para-se – como as maiorias gostam de repetir. É que não se pensa e isso não influi aparentemente no fluxo das vidas, porque não se pensa mas imagina-se que se o faz constantemente, e mais, livremente.
Algumas pessoas mais intelectualmente honestas, embora presas nas mesmas cadeias, têm a pequena ousadia de objetar com a inutilidade do pensamento. Mais honesto, mas não menos limitador, esse é o cinismo da ignorância utilitarista e segura de si. Talvez um cinismo temperado com preguiça.
O utilitarismo, compreendido somente nos seus aspectos mais vulgares, contribui enormemente com a manutenção do pensamento balizado e guiado. Torna-se um instrumento de uniformização, até de forma contraditória porque as utilidades supostamente implicariam em buscas, não em aceitações.
Ou seja, a noção de utilitarismo foi deformada pela superficialidade em noção de impossibilidade do diverso. A utilidade tem que ser considerada em mão única e, ademais, irrevogável. Esse formato é uma verdadeira conquista da incoerência, porque a crença generalizada na contingência mantém-se a partir de múltiplos indivíduos que afirmam a liberdade!
O teórico vai-me cansando o juízo e lembro-me de algo que soou muito interessante, recentemente. Trata-se da repetição geral de que em breve só haverá smartphones. Claro que falo de uma trivialidade e que abstraio da tolice imensa que o nome telefone inteligente ou sagaz carrega.
Mas, é um caso interessantíssimo a crença em algo certo e impassível de ocorrer diversamente: só haverá smartphones. Tudo bem, embora haja poucos smartusers de smartphones, mas eles serão todos, não haverá outros. Se você, no futuro próximo, quiser um telefone móvel para falar apenas, você terá um smartphone.
Não servirá de nada entrever que pode ser pouco smart ter um smartphone somente para falar, o que se fazia antes em um dumbphone. Você não estará diante de uma opção, você só terá à venda smartphones.
Mas, você provavelmente vai achar que sua liberdade amplia-se com a disponibilidade desses telefones muito sábios. Na verdade, terá que achar isso, porque terá vergonha de perceber que foi levado a comprar algo que lhe traz o que não quer ou precisa. E, para não se julgar tolo, passará a usar as possibilidades inteligentíssimas do telefone e se integrará plenamente ao modelo, agora sem vergonha, sem achar-se tolo e achando-se livre!
Usarás o que tens de usar, comprarás o que tens de comprar. Claro, terás uma alternativa, que será não ter telefone algum. E se optares por isso, serás catalogado em uma categoria própria, já prevista para tanto. Terás de aceitar-te como um ser exótico e assim oferecer-te à percepção socialmente compartimentada, a única possível.
A liberdade é de ser conforme a modelos pré-estabelecidos, as opções já estão dadas, mas o terceiro nunca é dado. Nem pode ser cogitado, até porque o utilitarismo de aba de livro que preside aos pensamentos leva a julgar inúteis quaisquer cogitações que fujam aos guiões padrões.
Olá Andrei, texto muito bom, principalmente na comparação entre os ‘smartphones’ e dumbphones’.
O incomodo não é a questão do utilitarismo, a verdade é que nem as versões utilitaristas conseguem sair do padrão. Não temos liberdade alguma, mas pior é negar-se essa percepção. O utilitarista afirmaria que não é importante ser livre para pensar, uma vez que pensar não traria a possibilidade de se conduzir como melhor lhe aprouver.
O fato é que nem a liberdade de pensar nós temos, sempre influenciados por modelos e padrões, nem sabemos mais fazer isso. Ao meu ver é praticamente impossível fugir desses comportamentos e pensamentos estereotipados, pelo menos conscientemente, e caso seja possível, acaba-se por incorrer no erro de ser diferente demais e ser considerado como pessoa louca e sem razão, um pária a ser excluido do convívio das pessoas normais, isso se você mesmo não preferir se retirar desta convivência.
Davi, mesmo se considerarmos a impossibilidade da fuga, convém sempre a vigilância, na tentativa de não se adotar, em absoluto, o hábito condicionante, sem um relance de discernimento.
A atividade é árdua, sem dúvida. Neste ponto do smartphone, pelo menos, eu não tive maiores problemas; não por destreza própria, mas por desastre mesmo, já que o aparelho não resistiria muito em minhas desajeitadas mãos. Logo, não seria oportuno sequer cogitar a aquisição.
Continuo, então, com o Nokia que custou R$ 69,00 e que, ainda, possui uma lanterna que já me salvou de muitos sufocos! Risos
Ótimo texto, Andrei!
Concordo com Davi .Vai ficanco cada vez mais dificil ter liberdade de pensamento. Somos cobrados pela sociedade e sofremos se temos comportamento diferente do “imposto pela maioria.
É, quem se dispuser a pensar terá que ser catalogado como louco. E convém aceitar o rótulo, porque se não for este o louco, quantos não serão os cegos?
A coisa vai além, realmente, dos usos e desusos previamente aceites. Mas, Davi, não vejo propriamente o erro de excesso de diferença, em certas pessoas.
A exclusão consciente é auto-exclusão, mais que rejeição. Ela implica na aceitação de uma e outra liturgia, mas apenas como lubrificante social.
É possível que a diferença seja mostrada de forma catalogável para o público e consciente para o auto-excluído. A aceitação desse nível de teatro parece-me mais um exercício de tolerância que a inserção em um compartimento.
Bira, estimado, tu me deves alguns textos, não?
Tudo bem verdade, eu como viciado sem culpa, admito meus vícios, prejudiciais ou não. Um deles é estar conectado, pelo o que, os tais smartfones, seriam uma mão na roda. O outro é beber com um pouco de frequencia, assim que sou doido por um telefone inteligente desses que assobeia chupa cana e pega na bassoura.
Mas, para não tê-lo esmagado, pisoteado, embebido em alcool, ou qualquer desses acidentes, aguardo o dia que estiver milionario. Assim poderei ter uns três em cada bolso e ser bastante livre! =)
hehehe Abraços.
Bem, para levares três telefones sabidos em cada bolso, terás de usar a capa do Harry Potter. O problema vai ser o verão…
Meu amigo Lapa, você conhece bem minhas limitações.
Mas, prometo, vou providenciar um texto sobre o retorno de Lima, em que encontramos um casal de brasileiros – cidadãos do mundo – em demonstrações gratuitas de descortesia.
Sim… não precisa ter um telefone sabido, Lapa, tenha, pelo menos, um que atenda! Quase eu ia para Campina terça, aproveitar para assistir ao jogo do Barcelona, mas sem companhia…