Muitos seres mais pragmáticos que o pragmatismo praguejam contra as celebrações decorrentes de vitórias futebolísticas. Dizem – para ficarmos no episódio evidente da Espanha – que os espanhóis não terão melhoradas suas condições de vida, que o desemprego não recuará e que a idade para reforma continuará a mesma, a despeito de terem vencido o mundial de futebol.
Outros trilham o caminho inverso da tolice e ficam a dizer que estudos científicos atestam que os países ganhadores de mundiais apresentam crescimento econômico entre 0,258% e 1,473% superior ao de países que não ganharam! Ou trilham pela vertente da auto-ajuda que se pretende neurociência e dizem que a vitória produz um estímulo psico-social benfazejo que impulsa o país adiante, porque melhora a auto-estima e coisa e tal.
Esses dois pólos de abordagem têm em comum a necessidade de instrumentalizar o futebol. Ora, para instrumentalizar o futebol como meio de ganhar rios de dinheiro tem-se a Fifa!
É circo a inebriar as massas? É, sim, e daí? A política, as religiões também o são, e muito mais nocivas.
É um elemento fixador de identidades? Obviamente. E o caso espanhol evidencia isso. A vitória espanhola foi comemorada desde Manila até Toronto; houve enorme festa de rua em Buenos Aires e não eram somente espanhóis a festejarem. O ponto de articulação de uma celebração, aquele que explica uma comunidade de júbilo, é a língua.
A língua é o maior elemento de identificação que há; ela é a primeira camada da sensação de pertencimento a um certo grupo. Muito mais que a cor de pele, dos cabelos ou dos olhos, o signo mais evidente de identidade é o falar. Já não lembro bem, mas acho que foi Fernando Pessoa a dizer que a pátria é a língua.
Ela explica os variados graus de proximidade por seus variados graus de semelhança. Não é à toa que portugueses e galegos sentem-se mais próximos que portugueses e castelhanos, é porque suas línguas são mais semelhantes. E não é à toa que todos os falantes das variantes tardias do latim sentimo-nos mais próximos entre nós que dos falantes de alguma variante linguística saxônica ou eslava, ou escandinava.
E não é à toa que o inglês norte-americano, por ser o falar mais universal que há – pois o mandarim está circunscrito à China – é o de menor significado identitário. O que mais reúne é precisamente o que menos identifica; o mais universal é o de menos conteúdo próprio, porque ninguém de identifica pelo falar mais comum e sim, precisamente, pelo mais específico e próprio.
Por isso são artificiais as tentativas de se produzirem identificações que não atendam primeiramente a esse ponto de articulação. Por isso soava extremamente artificial um certo germanismo e um certo neerlandismo que se percebia nas transmissões televisivas brasileiras dos últimos jogos do mundial.
Com níveis variáveis de entusiasmo e sutileza, percebia-se que os narradores e comentaristas televisivos depositavam esperanças maiores nas equipes alemã e holandesa e não era por aspectos objetivos futebolísticos. Esse pessoal não cuida muito adequadamente das técnicas usuais para ser-se parcial e parecer que não se está sendo. À medida que se sentem à vontade, eles transparecem intenções nas ênfases e até no volume das vozes.
Sem me alongar muito, adianto que a postura parece-me resultante de complexo de inferioridade. Os rapazes da TV acham feio serem mais próximos culturalmente de uruguaios e espanhóis, então eles terminam acreditando que são quase alemães e holandeses, pois esses são mais ricos e mais loiros. Todavia, não creio que esses rapazes tenham sido embalados por canções de ninar em alemão ou holandês, quando eram miúdos nos colos de suas mães.
Claro que um e outro esforça-se para pronunciar corretamente o nome de alguma salsicha ou de algum jogador, daqueles nomes que têm mais consoantes que vogais. Todavia, esses rapazes não deveriam esquecer que, com muito menos esforço, podem entabular comunicação com um castelhano. Ora, isso não lhes diz coisa alguma? No creen en brujas, carajo?
Ótimo texto, Andrei.
Entre as inúteis trivialidades e a pseudo-tola-ciência-estatística dos comentários televisivos, chegou-se a solicitar nas ruas a pronúncia do nome de um jogador alemão.
A tolice instituída fez com que o exercício chegasse na mesa de bar… Ora, discutamos ali bobagens sérias e edificantes! Bolas!
Imagino que o entusiasmo de retratar a dificuldade – natural – da pronúncia é a nítida demonstração do complexo de inferioridade que você retratou.
Um abraço.
Caro Bira,
Hei de concordar inteiramente contigo. Temos o direito de escolher as bobagens sérias e edificantes que dicutiremos em mesas de bar. Não precisamos que a pauta seja fornecida pelos rapazes da TV.
A propósito dessa ânsia de pronunciar palavras estrangeiras corretamente, há um episódio delicioso da Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós, livro que te recomendo vivamente.
Recomendação aceita.
O buscarei!
Andrei, uma coisa que queria repercutir com vocês é o seguinte: em se partindo da mistificação de que a seleção brasileira foi derrotada principalmente pelo estado emocional, alguns farsantes hão de proclamar por consequencia que o maior mérito da seleção espanhola seria o controle emocional. Este raciocínio levado às últimas consequencias pode sugerir que um time formado por monges budistas seria forte candidato à copa. Nessa linha esquecemos que a campeã tem um treinador de verdade, que mudava a escalação e o posicionamento em campo conforme o adversário. Esquecemos que a campeã tem um time bastante técnico, um meio-campo todo ele qualificado, onde até o primeiro homem sabe sair com a bola, toca bem e chega com perigo ao ataque. Esquecemos que mesmo tecnicamente qualificados os jogadores eram taticamente bem treinados, operosos e eficientes, sem apelar à violência e a um esquema tacanho. Ou seja, se o que chamamos de senso comum não percebe as reais motivações da nossa derrota, e o que é pior, não percebe os verdadeiros motivos do sucesso espanhol, é de se esperar que, exceto o “descontrole emocional”, podemos e devemos repetir os mesmos erros ou ainda erros diferentes, dificilmente seguiremos as lições deixadas pelos campeões e, provavelmente, estaremos nas próximas copas à espera de um salvador da pátria, que “extermine” o “bode expiatório” do malogro mais recente, e nos conduza, cegos e burros, a mais uma “vitória mágica”, ou a mais um malogro. E entre “vitórias mágicas” e malogros, dificilmente nossa sociedade poderá perceber que sendo o futebol uma metáfora da vida, nos erros, geralmente, estamos plantando malogros, e nos acertos, geralmente, construímos as vitórias. Esperemos o sebastião da vez.
Julinho,
Pensava nisso, há pouco. Mais precisamente, pensava numa idéia que se vai cristalizando aos poucos.
As pessoas depositam enormes expectativas no mundial de 2014, a ser disputado no Brasil. E adotam uma variante de teoria conspiratória que assume que os insucessos são necessários para os sucessos porque há uma enorme conspiração por trás.
É trágico. Que alguns insucessos sejam condição de outros sucessos, é verdade desde que haja aprendizado. Mas, não porque seja tudo jogo de cartas marcadas. É profundamente tolo, além de tudo.
O caso espanhol é de talento e, sobretudo, de inteligência. Como disse o Miguel, na postagem anterior, a Espanha é o triunfo da inteligência, que estava no Barcelona, e a superação da Fúria.
De minha parte, tenho como exemplo o caso de 1998, em que o Brasil perdeu porque jogou pior que a França. Todavia, todo sujeito que achava de falar de futebol dava-se ares enigmáticos e falava de uma conspiração que não conseguia nem mesmo delinear.
Ora, se algo mafioso aconteceu foi a escalação do Ronaldo sem condições de jogar. O resto jogou-se em campo!
Foste muito preciso ao apontar que esperamos vitórias mágicas, depois de nos purgarmos dos bodes expiatórios, linchando-os e votando-os ao ostracismo.