Conversávamos, ontem, sobre vários assuntos e esse da saúde pública voltou à evidência. No Brasil, a prestação de serviços de saúde deve ser pública e universal, segundo a constituição. Significa que todos os residentes neste país têm acesso garantido a tais serviços, independentemente de qualquer pagamento.
Estruturou-se um sistema para por essa garantia legal em funcionamento e o governo central estabeleceu um modelo de repasses de dinheiros para as unidades federativas – os estados federados e os municípios – administrarem e disponibilizarem as prestações. O sistema atual é muito melhor que os modelos adotados anteriormente. Realmente, antes da universalização, quem não dispusesse de algum dinheiro estava condenado a morrer sem quaisquer tratamentos, caso se visse doente.
Todavia, embora alguma coisa seja melhor que coisa alguma, o atendimento na saúde pública é muito precário e dele servem-se as camadas mais pobres da população. Não é intenção minha tratar dos vários desvios de dinheiros públicos, nem dos erros administrativos, muito embora seja quase inevitável apontar que existem. A intenção é, sem alongar-se demasiado, desnudar a causa mais profunda do mal funcionamento desse serviço público.
Ele funciona mal exatamente porque serve aos mais pobres, deve-se dizer sem mais arrodeios. Ora, as camadas economicamente superiores da sociedade servem-se de planos de seguro de saúde privados e, no fundo, estão pouco ou nada preocupadas com os serviços que elas não utilizam. É, basicamente, a lógica segundo a qual a dor dos outros não dói em mim atuando abertamente.
Alguém poderia lançar a objeção da democracia e argumentar que este mal funcionamento é, enfim, resultante da vontade geral. Essa objeção, contudo, tem o defeito de supor que uma democracia formal é mais que isso, ou seja, que é mais que forma ou farsa. Seria necessário, para suportar a tese da vontade de não funcionamento, acreditar que as pessoas querem o pior para si. Com efeito, é uma tese muito cara ao conservatismo social, mas absolutamente estúpida.
As pessoas não querem o pior para si. Elas, na verdade, não dispõem dos meios de organizar sua percepção e afirma-la no palco democrático, postulando efetivamente o que é melhor para si. Encontram-se excluídas por uma mistura de ignorância e emergência do dia-a-dia, o que lhes impede de conhecer direitos e postular sua efetividade. Escolher pressupõe conhecer as alternativas e suas consequências e quem não atende a esses antecedentes não escolhe coisa alguma.
A mesma razão explica a ineficácia e a indiferença das entidades estatais de controle dos serviços públicos de saúde. Os fiscais não usam esses serviços e limitam-se, portanto, às costumeiras abordagens formais, comuns em quem não está a defender interesses próprios. Contentam-se, enfim, em justificar-se frente aos do mesmo grupo e receber seus salários ao final dos meses.
O serviço público de saúde não funciona porque é para pobres. E o inverso também pode ser dito com muita frequência: os serviços públicos de importância para as classes médias e altas funcionam bem a contento. Basta, por exemplo, pensar-se nos prestados pelo Departamento de Trânsito, pela Receita Federal e pela Polícia Federal na expedição de passaportes. Alguém poderia arguir: os serviços de fiscalização de serviços como os de internet não funcionam. Eu responderia que esses fiscais estatais foram feitos para não funcionar. Portanto, funcionam, no sentido de que cumprem sua missão. Além disso, os pobres, na relação com os prestadores dos serviços fiscalizados, são os consumidores.
Pedro,
O que disseste retrata bem o suicídio coletivo se replicando.
O consumidor de telefonia e internet, por exemplo, que está despreocupado com a saúde pública, não lembra que ele é o pobre em relação ao sujeito que usa conexão via satélite.
E ele é levado a sonhar com a conexão via satélite, ao invés de tentar desmontar a lógica selvática do serviço concedido, em que o concessionário capturou o concedente.
Mais ou menos a mesma coisa do fulano preso no engarrafamento. Sonha em ter um helicoptero, mas não pensa em aumentar o metrô.