Nós somos intimamente descrentes da serventia das normas, profundamente mal educados e demasiado individualistas, embora hipocritamente proclamemos o coletivo e o estado de direito. Não hesitamos em julgar, a cada oportunidade, se uma regra deve, ou não, ser cumprida. Legislamos e aplicamos normas próprias a cada instante, consoante o imediato e mais mesquinho interesse.
O trânsito de automóveis nas cidades é o palco onde essas inclinações bárbaras representam sua comédia. Comédia, sim, pois tragédia seria apenas se não pudesse ser de outra forma. No comportamento habitual dos automobilistas estão concentrados os pecadilhos que se praticam dispersamente em todas as esferas. Ele é uma síntese.
Aqui, as pessoas são sem fantasias o poço de mesquinhez e desprezo por regras que se esforçam por disfarçar em outras ocasiões. O automobilista médio é capaz de uma série enorme de infrações para atingir o sucesso mais ínfimo e desprezível possível. É plenamente capaz de por vidas em risco para estar cinco ou dez metros na frente dos outros. É capaz de fazer esperar todo um grupo de pessoas a bem de seu próprio, imediato e insignificante interesse.
É capaz de dificultar as coisas para os pedestres – em um dia de chuvas, por exemplo – em troca de vantagem nenhuma para si que, ademais, está abrigado dentro do seu carro. A figura do automobilista médio, enfim, retrata melhor que outra qualquer o individualismo em forma quase pura, desprovido dos pudores e explicações de uma conversa, por exemplo. Aqui, a prática não está divorciada do discurso, pois ela é prática sem discurso.
O homem médio real, incapaz de frear-se e ávido pelo gozo de julgar-se sem freios externos também, mostra-se em toda dimensão atrás do volante de um automóvel. Sacrifica pela sua ânsia de importância tudo o mais que sejam interesses dos outros. Mas, os outros, ora os outros…
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