Na democracia representativa o poder pertence ao povo apenas em termos formais ou retóricos. O ato de votar em representantes não se confunde com o exercício real do poder, materializado em decisões tomadas cotidianamente. O poder está muito mais na potencialidade econômica e na inserção nas camadas do estado que na possibilidade de manifestar uma escolha em um dado momento.
Feita a escolha, as distâncias se alargam entre os mandantes e os mandatários e entre os mandantes e os burocratas não mandatários. Então, os serviços públicos fundamentais, como saúde e educação, não estão voltados a uma boa prestação porque as camadas que exercem efetivamente o poder não os consomem.
Não há interesse em prestações públicas eficazes de saúde e educação, no Brasil, porque os estratos sociais dominantes não são seus utilizadores finais preponderantes. Esses estratos preferem aumentar a apropriação de rendas e consumir serviços privados, deixando aos serviços públicos a tarefa de atender aos mais pobres e menos poderosos.
Para que fossem melhor prestados, esses serviços teriam que ter as camadas médias e médias-altas como destinatárias. Mas, observa-se precisamente uma inversão da lógica do serviço público, pois o estado dá subsídios a quem menos precisa, para que adquiram serviços privados em setores de participação pública formalmente universal.
Vigora no Brasil um absurdo que são as deduções de despesas médicas e educacionais privadas do imposto de renda devido anualmente. Essa renúncia fiscal é concentradora de rendas e ajuda precisamente a quem menos precisa de ajuda. Ademais disso, é destituída de lógica institucional porque se os serviços são públicos e universais não há razões para oferecer subsídios a quem os compra à iniciativa privada.
O dinheiro das deduções de despesas médicas e educacionais do imposto de renda deveria ser gasto nos sistemas públicos dessas duas áreas. É preciso jogar as classes médias e altas no Sistema Único de Saúde e na educação básica pública, para que elas melhorem para todos. Porque essas classes tem poder de reclamar uma melhora real das prestações.
Trata-se de envolver o máximo de pessoas, de classes sociais mais elevadas, no problema dos serviços públicos fundamentais, evitando que sigam sua trajetória de coisas para pobres e, portanto, coisas que podem funcionar mal. As prestações privadas de saúde, por meio de planos e seguros, não devem ser subsidiadas com dinheiros públicos, pois isso representa a iniquidade pelo duplo e chancelada pelo estado.
A dedutibilidade é o prêmio da inércia concentradora que permeia a história desse país. Por outro lado, retrata bem nosso oportunismo na apropriação de recursos públicos, sob os vários disfarces utilizados, sendo o mais comum o discurso meritocrático. O mérito aqui consiste em uma minoria retirar o máximo de uma maioria, por intermédio do Estado, embora esse devesse atuar para todos.
Essa sistemática explica porque os discursos repetidos à exaustão contra os tributos são essencialmente insinceros. Quem reclama contra os tributos altos sem correspondência com serviços públicos bons é precisamente o grupo que recebe compensações estatais indiretas, como salários maiores que as utilidades, isenções e subsídios. Na verdade, esse grupo paga poucos tributos por poucos serviços. Apropriou-se do estado para receber dele os meios financeiros de consumir serviços privados.
Os mais pobres, esses pagam muitos tributos por serviços ruins e são precisamente aqueles cujas reclamações são menos articuladas e menos tomadas em conta. Pagam mais porque fazem-no sobre o consumo, de forma inescapável. Proporcionalmente às rendas, um sistema que tributa preferencialmente o consumo, penaliza evidentemente os mais pobres.
Até mesmo por imperativo de coerência discursiva liberal e meritocrática, os subsídios embutidos nas deduções de despesas médicas e educacionais deviam ser absolutamente suprimidos. Quem pode e quer escapar dos serviços públicos de saúde, que o faça por sua conta e sem a ajuda da entidade que deveria provê-lo igualmente a todos.
Enfim, se as camadas mais ricas da sociedade brasileira tivessem que recorrer à saúde e educação básica públicas, rapidamente esses serviços melhorariam de nível, em benefício de todo o grupo.
Questão tormentosa. Mas vou me arriscar a tomar um cascudo do amigo. Acho que em tese seus argumentos são perfeitos, mas penso que o IR é um dos tributos que menos contribui com a iniquidade tributária deste país pois é dos poucos que observa a capacidade de contribuição. A maior iniquidade a meu ver é não termos tributos que atuem sobre as grandes riquezas e sobre a sua transmissão por herança. Outro absurdo é que uma das maiores fontes de arrecadação é sobre o consumo, que não observa a capacidade de contribuição e é altamente regressivo, como você apontou. Algo que acentua o problema é a grande quantidade de incentivos fiscais que beneficiam alguns setores da indústria e que tornam a arrecadação refém de crises e de grupos de pressão que tomam o Estado de assalto. Nosso setor bancário tem uma das maiores margens de lucro do mundo e se houvesse maior concorrência no setor haveria espaço para maior tributação que hoje é toda repassada ao consumidor. Voltando ao IR penso que é realmente absurdo subsidiar gastos em serviços que a união oferece ou deveria oferecer. Concordo que o mecanismo de fuga da classe média em busca de soluções privadas posterga a solução de problemas importantes pois atenua a cobrança sobre as autoridades, mas acho que a simples supressão do mecanismo de desconto criaria embaraços ao sistema educacional como um todo e à educação dessa parcela da população, minaria a capacidade de compra da classe média o que traria repercussão na economia e provavelmente diminuiria as vagas para os estudantes das classes mais baixas. Tenha certeza que seriam os primeiros a sofrer com a falta de vagas. Talvez a solução fosse o gradualismo, onde o contribuinte tivesse tempo de ajustar seus gastos, o governo de ajustar a oferta de vagas, quem sabe comprando lugares na rede perticular como um mecanismo de transição até a conquista de um sistema público de ensino de qualidade. Mas repito, em tese, concordo com tudo o que você colocou.
Julinho,
Realmente, o IR é relativamente progressivo. O caso é que os pagadores de IR pessoa física no Brasil já integram as classes médias por definição, tão baixas são as rendas médias.
Ou seja, o universo dos isentos de IR é imensamente maior que o dos sujeitos ao imposto. A isenção hoje vai até R$ 1.500,00, ou seja, aproximadamente três salários mínimos.
O que se observa é que poucos trabalhadores ganham mais que isso. Então, creio que estimular exatamente quem ganha mais a fugir dos serviços públicos está equivocado mesmo.
Eu acho mesmo é que todos deviam ser colocados no mesmo barco na maior medida possível. Somente assim haveria pressão para melhoras.