Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

O modismo, a ignorância e o atrevimento.

Esse touro é velho ou novo?

Há quinze anos, mais ou menos, tive ocasião de estar em uma palestra de Ariano Suassuna. Ele é uma figura profundamente ibérica, em termos culturais, e nobre de comportamento. Suassuna é um grande autor de romances e de teatro – talvez o maior autor brasileiro vivo – e também professor catedrático de filosofia.

Por cultivar um modelo estético fora de moda, costumeiramente ele é dito anacrônico e preso ao passado. Claro, e isso percebe-se imadiatamente, que é a classificação resultante da conjunção demoníaca da superficialidade com a ignorância reinante.

Nesse dia, Ariano Suassuna contou aos espectadores um episódio que se teria passado entre ele e um repórter de um jornal diário de São Paulo. O caso foi mais ou menos o seguinte, até onde consigo trazer de memória. Estava ele no saguão de um hotel, para uma entrevista com o jornalista. Depois dos cumprimentos de praxe, sentados, o jornalista pergunta, sem mais, nem menos, se Ariano não se julga um homem de gostos ultrapassados, que repudia toda nova manifestação.

Suassuna pára e pede-lhe um instantinho, que ia lá em cima, no quarto, buscar algo. Sobe, apanha o que tinha a buscar e volta. Senta-se com um painel de cartão onde estão, lado a lado, seis representações pictóricas de touros. Ele diz que anda com esse grande cartão cheio de pinturas por todos os lados.

Mostra o painel ao jornalista e pergunta: meu caro, diga-me qual desses seis touros é o mais recente e qual é o mais velho? O jornalista não recua e nisso dá provas de ser plenamente o que é: atrevido e ignorante sem sabê-lo. E aponta aquelas que seriam a mais recente e a mais antiga pintura.

O escritor replica: olhe só, esse que você acha o mais novo é o mais antigo, isso é uma pintura de uma caverna francesa. E esse que você acha o mais velho é dos mais novos, você nunca ouviu falar de Picasso? Como é que eu sou antigo, anacrônico ou rejeito o novo?

Se se tratasse de outra conversa e de outro interlocutor, provavelmente haveria um impasse constrangedor que, também provavelmente, o afável Ariano contornaria iniciando uma de suas deliciosas estórias. A idade das pinturas dos touros foi um recurso ao mesmo tempo perverso e cordial. A entrevista terá seguido seu rumo e o entrevistador seguido a fazer perguntas que não passariam de variantes da primeira tolice. Afinal, era uma obrigação profissional falar com aquele fulano que escreve livros e é anacrônico.

A enorme maioria das pessoas é o repórter, não o Ariano Suassuna. Quer dizer, julga a partir de qualquer coisa que traz na cabeça, sem nunca ter-se preocupado em saber da ocorrência de algo anterior. Não apenas vive confortavelmente no presente contínuo, como acha que esse presente é uma coisa mágica e auto-gerada. Não vê apenas uma concretude atemporal, mas acha que essa suspensão do tempo traz em si um suporte valorativo e teórico.

Quase todas as posturas diante das coisas da vida – inclusivamente frente à arte, o que é terrível – tornaram-se em abordagens de consumo e, como tal, submetidas aos modelos e à lógica aplicáveis a ele. Relativamente ao consumo, a idéia mais genial que já se teve foi a obsolescência programada. A idéia que lhe era alternativa seria pior, pois implicaria redução da qualidade dos objetos comprados e vendidos. Na verdade, andam juntas.

Assim, o acréscimo de um detalhe ou de uma desprezível funcionalidade a um produto implicam a obsolescência dele mesmo, no formato imediatamente anterior. Por exemplo, trocam-se os faróis de um automóvel – que segue sendo o mesmo – e o modelo dos faróis antigos passa a ser antigo! Trocam-se os nomes de artigos de professores universitários e já se têm textos novos e textos superados. É muito engenhoso, realmente.

O problema é a que as pessoas acreditam nisso como baliza de vida, e não apenas de consumo de automóveis ou textos acadêmicos. E são reféns das modas de falar, de vestir-se, de escrever, de gesticular, de comprar. Tudo estaria bem se cada qual andasse na sua prisão, mas há que aprisionar a todos. A necessidade de difusão enseja muito desconforto para quem não quer ser aprisionado, nem quer andar quixotescamente a tentar resgatar os outros da suas.

Ruim das modas e da propaganda é o que elas têm de eficazes: elas não produzem só compradores e reféns das novidades, elas engendram a replicação do modelo, ou seja, é propaganda que cria propagandistas quase involuntários. Não basta, então, adotar um modo tal ou qual, tem que se preocupar com que todos o adotem.

O que possibilita isso – e não há outra maneira para dizê-lo – é a ignorância. Porque é ela que permite a ausência de auto-crítica, esta a causa imediata da afirmação do modismo e da não compreensão das eventuais rejeições que se levantem contra ele. Quem vive o modismo e pede que assim se viva, fá-lo porque no fundo desconhece outra maneira de viver, e desconhecer é ignorar. Do contrário, teria que supor um mar de má-fé, mas prefiro supor um mar de ignorância, embora seja pior situação.

O dia-a-dia é terrível. O mesmo fulano que se impressiona porque não estás trajando uma camiseta de malha apertada, com desenhos exóticos, e porque não te ocupas em levantar pesos para aumentares os músculos, não desconfia minimamente que, por exemplo, entregou-se ao exercício de falar bobagens sobre rótulos de garrafas de vinho, quando tomou conhecimento dessa bebida já velho. Preso a um modismo, sente-se a vontade para te inquirir porque não adotas outro.

Com os gostos sonoros, as coisas vão aos píncaros. A vasta maioria das pessoas ignora solenemente a diferença entre um dó e um ré, mas não recuará um milímetro antes de acusar alguém de anacronismo musical, simplesmente por não estar a deixar-se invadir pelos pavilhões auriculares por alguma coisa feita a menos de seis meses.

E ainda reclama-se das leis, que seriam poucas para uns, muitas para outros. Sufocantes das liberdades, ou permissivas demais. Nada disso, as leis são até doces comparadas com as restrições às liberdades que a sociedade engendra.

5 Comments

  1. Reginaldo

    A vaidade nada mais é do que a prisão do ignorante

  2. Reginaldo

    Andrei,
    Conclui que, a vaidade nada mais é do que a prisão do ignorante, que contraditoriamente o torna o carcereiro e o preso, o opressor e o oprimido, o atrevido e o ingênuo …
    Reginaldo

    • andrei barros correia

      Reginaldo,

      Pois é, utilizaste uma boa figura, que não me tinha ocorrido, o sujeito torna-se preso e carcereiro.

      E, talvez, para continuar preso, precise encarcerar mais e então a coisa replica-se.

  3. Julinho da Adelaide

    Fui aluno de Ariano e realmente foi experiência ímpar. Não fosse a obtusidade reinante, teria muito mais projeção, não que ele queira ou precise, mas o país precisa, embora alguns não queiram. Na falta dele ximbinha, faustão, ratinho e ana maria braga vão indo.

  4. Olívia Gomes

    O uso das pinturas dos touros é genial. O fato é que as pessoas só vêem o que querem. Se acham suficientes em seus conceitos e idéias pré-fixadas, o que os leva a não querer conhecer o novo. O ignorante se basta.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *