Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: fevereiro 2011 (Page 2 of 3)

Alfonso Armada e uma característica sempre presente.

Em 1981, o tenente-coronel da guarda civil Tejero tentou um patético golpe de estado, na Espanha. Tejeros são assim, atrapalham os Armada, embora ambos sejam tipos infames. Hoje, trinta anos depois, ainda se tentam reconstituir os detalhes e encontrar melhor definição dos papéis no golpe.

O general Alfonso Armada foi preceptor do Príncipe João Carlos. Parece que exagerou a crença na influência que teria sobre o Rei João Carlos, o que o levou a tentar um golpe bem armado, aparentemente constitucional e com a benção real. No fim e ao cabo, o Rei mostrou-se um homem grandioso, adequado perfeitamente ao seu papel; está evidente que não há Espanha sem João Carlos.

O golpe planeado por Armada era de tipo clássico e tinha cores institucionais suaves, ainda que se baseasse nas inclinações e insatisfações de antigos e declarados falangistas. Essa gente não aceitava a democracia política e as autonomias regionais e ainda velava o corpo de Franco.

Esse tipo de manobra passa sempre pela exageração de um estado de crise. Ou seja, é preciso dizer e repetir que há tensões, que as tensões estão a ponto de gerar rupturas e que essas rupturas só podem evitar-se com um governo de concertação. É preciso dizer que as forças armadas enxergam essa tensão, preocupam-se com ela e dão fiança ao postulante a líder da concertação.

A partir desse estado de ânimo, uma figura militar de prestígio insinua-se como disponível para a árdua missão. Faz lembrar a todo tempo a proximidade do Rei e insinua – o mais discretamente possível – que tem decisiva influência sobre o monarca, quase a ponto de dar-lhe as ordens.

Como não era burro, Armada queria um golpe institucional, ou seja, queria criar o vácuo de poder parlamentar e apresentar-se ao  congresso para ser votado presidente de governo. Claro que o congresso faria a escolha sob pressão militar e da percepção exagerada de crise e claro que a manobra pressupunha que o Rei fosse meramente decorativo.

Mas, nesses movimentos, os elementos de baixo nível e mais ignorantes atrapalham o andar dos planos. Não compreendem as sutilezas. Tejero não compreendeu que era inviável uma volta pura e simples à ditadura e não percebeu que o Rei não podia prestar homenagens a um golpe contra a constituição. Não percebeu, enfim, que são possíveis golpes aparentemente dentro da constitucionalidade, embora esses não se façam com Tejeros.

Reuniu uns guradas civis, alguns militares, acreditou no empenho de um e outro comandante e partiu a invadir o parlamento e a dar tiros para o alto. Aí, o golpe já estava perdido para ele e, mais ainda para o General Armada. Para este último, a tejerada foi uma tragédia.

Imagino que ele, Armada, tenha estimulado discretamente o coronel Tejero, mas que não tenha imaginado que o golpista vulgar se precipitasse tão escandalosamente. Um erro de cálculo de quem não podia errar, porque o erro foi traição à monarquia e cobrou-lhe um preço.

Alfonso Armada teve ocasiões de falar do episódio, passados vários anos. O tempo, para pessoas sem honra, tem poucos efeitos, além de fortificar o sabor a infâmia do que dizem. Sustenta que na época dispunha-se a sacrificar-se e ainda insinua não compreender a posição do Rei, como se este fosse seu cúmplice e o tivesse traído.

O sacrificar-se foi que me chamou bastante a atenção. Quase todos os patifes que aspiram com toda a vontade a um posto de comando dizem que se oferecem a um sacrifício. Isso ocorre desde as chefias mais desprezíveis àquelas mais importantes. O aspirante não diz que quer, com toda a vontade, por orgulho vaidade ou crença na possibilidade colaborar, diz que se dispõe a um sacrifício, como se não quisesse.

A reforçar esse traço distintivo dos patifes, basta lembra-se que podiam simplesmente ficar calados, ou seja, querer sem dizer o porquê. Ou podiam dizer que aspiram à chefia porque se acreditam melhores preparados para exercê-la, mas não, o rompimento com a hipocrisia teatral não ocorre.

Nunca ocorre, realmente. O tipo de aspirante a que me refiro sempre é o inqualificável sujeito que se dispõe a um sacrifício, como se fosse extraído de um número diferente daquele dos demais homens, como se não estivesse no plano comparativo das habilidades maiores ou melhores.

E, nada obstante, sua fervorosa vontade, seu desejo irreprimível é simplesmente evidente para todos, como uma tara que o tarado pensa ser totalmente despercebida. É um traço estranho esse, porque revela uma vontade de disfarce tão grande que flerta com a ignorância.

Censura à TV3 por emitir em catalão.

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O governo da Autonomia Valenciana, liderado pela Falange ora sob o apelido de PP, retirou do ar a TV3 porque ela transmite em catalão. O nome disto é censura, sem mais nem menos.

Aconteceu, é bom lembrar, em país europeu, rico e sempre disposto a fazer discursos hipócritas de estado de direito e outras tolices deste jaez.

A verdade é que o estado é uma questão de poder e o direito – instrumental – é a mesma coisa. Então, qualquer violência pode vestir-se juridicamente. Continua sendo uma violência, é bom que se diga.

Dominação mediática. A piada permitida.

Os meios de comunicações audiovisuais são instrumentos fortíssimos de dominação, que atuam sem que os dominados consigam percebê-lo. Melhor dizendo, atuam com certas sutilezas que levam os dominados a assimilarem padrões de superioridade e de inferioridade, ao tempo em que tudo aparenta igualdade.

Um exemplo trivial, que me vem agora à mente, são as séries televisivas norte-americanas. Todas elas seguem o modelo de personagens padronizados, segundo a lógica de oferecer os protótipos de identificação social básicos.  Oferecem também as piadas permitidas, ou seja, o campo encontra-se previamente delimitado.

Especificamente, penso agora no chamado Big Bang Theory. Essa série apresenta quatro personagens principais: dois norte-americanos brancos wasp, um norte-americano judeu e um indiano. São físicos ou engenheiros, ocupantes daquela tipologia comportamental que em inglês chama-se nerd.

Seus ridículos são seus traços únicos e, no fundo, não-ridículos. Aparentemente, não há aqui qualquer desnível social, porque todos são objetos de piadas, que se parecem iguais em termos valorativos, mas não são. Há uma estratificação entre dominados e dominadores, perceptível na escolha das piadas.

Sabe-se muito bem que a indústria do entretenimento de massas é detida, em significativa proporção, por judeus norte-americanos. Sabe-se também que é estúpido apresentar uma personagem infalível, porque então a inverossimilhança evidencia o absurdo. A grande jogada é escolher as piadas que se aceitam contra si.

Na série dos físicos, a personagem judia é alvo de piadas por nariz grande, pela indumentária e por uma ginecofilia exacerbada e desproprorcional à maturidade esperada da idade. Isso é precisamente aquilo que foi estabelecido pelos próprios como as piadas aceites.

A personagem indiana é alvo de piadas, mais ou menos sutis, relativamente a homossexualidade e misoginia, o que insinua inferioridade, notadamente em sociedades androcêntricas, em que o tipo dominante é o conquistador. Todavia, o público é levado a não perceber as diferenças valorativas, preso ao fato de que todos são alvos de piadas que, todavia, são muito distintas.

Não é à toa que a personagem do judeu não é alvo de insinuações de homossexualismo, porque essa característica é objeto de uma rejeição profunda pelo judaísmo. Pela mesma razão, não se fazem piadas com o suicídio de judeus ou com deles que tenham inclinações suicidas.

E assim funciona porque eles escolhem os estereótipos e para si permitem aqueles que não têm maiores cargas ofensivas e na medida para dar aparência de igualdade e tolerância.

Claro que fazer anedotas ou apontar os ridículos dos outros em caracteres rejeitados no seu grupo social ou étnico é algo de péssimo gôsto. Mas, é precisamente o que se faz com as personagens que simbolizam o outro. Com o outro, os limites de gôsto ou de cordialidade simplesmente não existem.

E o público fica na sua confortável tolice de achar que os espetáculos mediáticos são inertes em valorações.

Comeram Lurdinha! Um episódio de Anus Mundi.

Por Sidarta

Em Anus Mundi só tinha luz elétrica, até meados dos anos 1950’s, das 5 da tarde às 10 da noite. Quando dava 10 para as 10 da noite, a luz dava uma piscada em toda a cidade e diziam que a “usina” estava avisando que “iam soltar a onça”.

Os candeeiros eram acesos e as pessoas retornavam às suas casas para ainda conversarem um pouco ou ir logo dormir. Tinham, enfim, 10 minutos entre a piscada da luz e a chegada em casa com as precárias luzes nas ruas ainda acesas.

Os bares mais perto da zona de meretrício continuavam funcionando até perto das 11 horas da noite, iluminados a candeeiro de querosene, e os que se detinham lá até depois das 10 horas sempre levavam nos bolsos lanternas de pilha, para verem os buracos nas ruas no caminho de volta para casa. Nas noites de lua economizavam pilha, pois o céu era muito limpo e as ruas ficavam bem claras.

Foi em uma noite de lua que se deu o caso de Lurdinha.

Lurdinha, filha do já idoso, vermelho, brabo, com pressão alta, apreciador de uma charque bem salgada e asmático Seu Aprígio, e de dona Luzia, bem mais jovem, recatada, jeitosa e delicada, era, aos 18 anos, uma das mais cobiçadas prendas da cidade e namorava “sério e prá casar” com Zé Luís Lagrange, um rapaz de uns 23 anos de idade, metido a bonito, preguiçoso e o filho mais velho de Seu Luis da granja.

Zé Luís, o jovem namorador, dizia-se descendente de franceses, por conta do sobrenome, mesmo sabendo que o original do seu pai era mesmo bem popular e brasileiro; o nome José Luis Lagrange tinha sido escolhido e registrado no cartório pelo seu pai para  que o filho mais velho não enfrentasse as mesmas piadas. O fato é que o prosáico nome de família vinha desde o avô, que tinha começado o negócio de vender ovos de granja, ainda no início do século XX. Assim, Zé Luís afrancesou-se e tornou-se Lagrange.

Monsieur Lagrange, como vaidosamente apreciava ser chamado pelos colegas no ginásio,  onde não passou nos estudos, também deveria herdar a granja do pai e isso lhe dava a presunção de vir a ter uma renda para manter uma família, comprar bons sapatos e um dia até comprar um carro. Era assim, também, uma boa prenda quando analisado pelo lado das mães com filhas para casar.

Em uma sexta-feira, como de hábito, Zé Luís namorava com Lurdinha no terraço da casa dela, já perto das 10 horas da noite, enquanto Seu Aprígio cochilava ouvindo o rádio e Dona Luzia fazia um crochê,  e tinha um olho no cochilo de Seu Aprígio e uma mão nas pernas de Lurdinha.

Foi aí que a tensão subiu mesmo e resolveram que seria no dia seguinte, um sábado de lua, que iam “partir para os finalmente”. Tinham somente que fazer Seu Aprígio dormir mesmo cedo e profundamente e não somente cochilar, e também dar um jeito de que Dona Luzia fosse mais tolerante no “agarra-agarra” deles no terraço e fizesse “vista grossa”.

Essa última parte da trama não era tão difícil, pois Lurdinha sabia pela mãe que o “velho Aprígio” já não dava conta de Dona Luzia e que ela tinha lhe dito – Jesus me perdoe – que estava a ponto de pensar em arrumar alguém com quem se virar. Mas, nada disso estava confirmado e nem o Padre Almiro tinha ouvido alguma coisa de Dona Luzia nas confissões, só informações de segunda mão passadas pelo seu sacristão.

Verdade é que Dona Luzia vinha fazendo freqüentes consultas ginecológicas com Dr. Aluizio e comprando remédios na farmácia, e especulavam que tivesse com algum problema de útero, o que gerou uma certa solidariedade das amigas e até também a suspeita de que Seu Aprígio tivesse pegado alguma coisa na zona e passado para Dona Luzia. Tomava também, com orientação do Dr. Aluizio, Belergal e Maracujina para as crises de ansiedade e de insônia.

No sábado planejado “para os finalmente” por Zé Luis e Lurdinha, essa conversou com a mãe e disse que não agüentava mais os hormônios em excitação e que ia “se perder” de noite com Zé Luís, no terraço de casa mesmo. Entretanto, precisava da ajuda da mãe para botar Seu Aprígio para dormir pesado e mais cedo e insinuou que desconfiava das idas da mãe ao consultório de Dr. Aluizio, pois aparentemente ela não tinha doença nenhuma em casa e também não tomava os remédios nem usava as pomadas que comprava na farmácia.

Dona Luzia, encurralada pela verdade desconfiada pela filha, concordou em dar uma dose castigada de Belergal e de Maracujina a Seu Aprígio, logo depois do jantar, e a ficar lá dentro de casa das 10 às 11 horas da noite, deixando a porta aberta; depois disso tinha mesmo que fechar a porta da casa pois algum bêbado vindo da zona podia parar na casa com a porta aberta e o candeeiro aceso e perguntar se tinha morrido alguém.

Às nove e meia da noite do sábado, lua bem clara e romântica, seu Aprígio já dormia e roncava pesado na cadeira de balanço enquanto Dona Luzia prosseguia no seu crochê e Zé Luis e Lurdinha em seus trabalhos manuais. Dez da noite e a luz apagou, com Zé Luis olhando para os lados para ver se ainda tinha alguém na rua. A noite de lua tinha atrapalhado os planos dele, pois uma turma já com muita aguardente na cabeça resolveu fazer uma serenata com violão bem no meio da rua. Lá pelas 11 horas os bêbados não conseguiam mais cantar nada, muito menos tocar violão e resolveram ir embora.

Sem perder tempo, Zé Luis partiu prá cima de Lurdinha com toda a sua experiência em sair com as meninas da zona “já amaciadas”.

Com pouca instrução sobre como eram “os finalmente” em termos de incômodos imediatos, Lurdinha começou a gritar um alto “ai, ai, ai” que acordou Biu de Serafim, que cochilava deitado na calçada por conta da cachaça que tinha tomado com os seresteiros.

Entendendo de imediato o que tinha acontecido, Biu de Serafim” deu uma boa risada e gritou também bem alto para toda a cidade ouvir:

–  COMERAM LURDINHA !

Logo os vizinhos também abriram as portas das suas casas e saíram para ver o que estava acontecendo, não dando muito tempo  para que Monsieur Zé Luis Lagrange se ajeitasse e desaparecesse de vista. Estava claro, o escândalo tinha sido mesmo coisa do vadio do Zé Luis.

Mesmo com todo o Belergal e a Maracujina que Dona Luzia tinha lhe dado para dormir, Seu Aprígio também acordou e, ao ver a situação formada dentro e fora da sua casa, teve um passamento, caiu com os olhos esbugalhados e um braço e uma mão entortada. Dona Luzia, que já estava de camisola para ir dormir, correu para chamar o Dr. Aluizio que, ao vê-la naqueles trajes e àquela hora na porta da sua casa, foi logo dizendo:

–  Aqui não, Luzia, segunda-feira no consultório às sete da noite.

Foi quando Dona Luzia explicou a Dr. Aluizio que Seu Aprígio tinha tido um passamento e que tava todo entronchado no chão.

Dr. Aluizio tirou logo o pijama e vestiu a roupa de médico, pegou sua maleta de primeiros socorros e foi com Dona Luzia ver Seu Aprígio. Ao chegar, aferiu logo a pressão arterial do paciente e constatou que estava altíssima e que Seu Aprígio devia ter tido um sério e provavelmente fatal derrame cerebral. Sabia que Seu Aprígio, se sobrevivesse, mataria alguém que ele soubesse  ter feito mal a Lurdinha, ou dado em cima de Dona Luzia, e aí disse:

–  Ele precisa ser bem tratado. O que ele gosta de comer?

–  Charque bem salgada, respondeu Dona Luzia.

–  Pois é, disse Dr. Aluizio,  ele vai ficar assim meio esquisito por uns dias e a senhora deve fazer todos os gostos dele. Pode dar a ele o que ele gosta de comer, e até uma caninha e uma boa carne de sol lá do Araripe; insista também com ele para ele ir prá cama com a senhora, exercício faz bem prá quem tem passamento.

No dia seguinte, depois do almoço, conforme esperado por Dr. Aluizio, Dona Luzia, Lurdinha e Zé Luis, Seu Aprígio teve outro passamento e, lamentavelmente, morreu…

Menos de um mês depois, Zé Luis Lagrange se mandou de Anus Mundi para Teresina dizendo que ia estudar para o concurso do Banco do Brasil e Lurdinha nunca mais ouviu falar dele.

Perguntas que não passam de pedidos de confirmação.

Faltam-me ânimo e tempo para algo que me agradaria bastante: escrever sobre as limitações impostas às pessoas por elas mesmas a viverem socialmente. Ou seja, para fazer aquilo que chamo psicologia social de mesa de café, um deleite para mim, mas que implica algum método, para não sair a falar muitas bobagens supostamente organizadas.

Na falta dessas coisas que o trabalho cotidiano impede, uma e outra divagação ainda é possível, ainda que dispersa, pouco profunda, feita meio às pressas, quando um fato chama a atenção. Realmente, a escravidão, ou o trabalho, por outra palavra, aprisiona e limita e ainda tem a faculdade de raramente produzir alguma utilidade real.

O caso é que pensava em como a enorme maioria das perguntas que se fazem não são perguntas. São pedidos de confirmação, feitos ao interlocutor, daquilo que o indagador afirma. Apenas a forma é de pergunta, a substância é de ordem, rejeição ou confirmação do compartilhamento de alguma opinião.

Claro que muito dessa real natureza das perguntas tem a ver com as maneiras habituais de se conduzir um diálogo. Ou seja, são formatos utilizados para tornar a conversação menos áspera e entrecortada, da mesma forma que atuam os lubrificantes nas engrenagens de algum mecanismo.

Todavia, o caráter lubrificante de algumas formas habituais não afasta a percepção de que a conversação praticamente não existe como diálogo em que as informações transitam entre pessoas e em que perguntas são exatamente isso. Não se esperam respostas, o que evidencia que não se fazem perguntas.

Isso porque acontece mais uma busca de identidade – por padrões variados – que uma busca de conhecimento ou de informação, se se preferir o segundo termo, menos abrangente.

Tive a infelicidade – sim, porque essas coisas são boas e ruins – de ter lido e gostado e prestado atenção em Nietzsche e em Ortega y Gasset. Assim, não consigo deixar de lembrar-me de passagens deles, embora não consiga cita-las de memória, nem me anime a ir agora aos livros para fazer transcrições.

O que se leu não é verdade alguma, assim isoladamente. É um ponto inicial para perceber as coisas que se vêem e que podem não ser assimiladas de maneira orgânica, sem uma modelagem, sem um desenho teórico e geral. E agora lembro-me de um dos lugares-comuns mais tolos e repetidos que existem, aquele de que não se deve generalizar. Ora, deve-se generalizar, é impositivo generalizar; não se devem esquecer as excepções, isso sim.

Uma generalização a não ser esquecida é que as pessoas são em ato muito menos do que são em potência. São limitadas por travas que somente fazem sentido ao se as considerarem coletivamente, porque individualmente e isoladamente elas são inqualificáveis nestes termos. Explico-me melhor: uma pessoa completamente isolada é só ela, sem termos de comparação e, portanto, sua realidade é sua potencialidade.

A vida social – coletiva talvez seja menos ambiguo e gerador de confusões – é o limitador mais intenso. Ela pede a homogeneização dos comportamentos e das idéias e o pedido só pode ser atendido com a padronização pelo mínimo. Essa demanda será atendida, necessariamente, a bem da coesão social e ao preço evidente da perda das potencialidades individuais.

Não se trata aqui de afirmar o individualismo, no sentido habitual em que este se entende. Trata-se de dizer que a vida social produz a limitação dos indivíduos, que se tornam cada vez mais individualistas por serem presas das limitações convencionais. O aparente paradoxo está no coletivo a produzir individualismo e indivíduos cada vez mais limitados.

Esses indivíduos não têm dúvidas, não pararam para pensar suficientemente em algo para saberem se têm dúvidas. Suas dúvidas são se suas certezas encontram-se nas cabeças dos outros da mesma forma que nas suas. A ausência de perguntas fica evidente na impossibilidade de resposta que não seja uma: a afirmação que faz o suposto perguntador.

Chega-se ao outro lado da coisa, as respostas. Ora, não há resposta válida excepto  a confirmação da afirmação que se fez com o nome de pergunta. A única coisa que o perguntador queria – e não era por ter alguma dúvida – era a confirmação do interlocutor de que participava das mesmas escassas idéias.

Portanto, o que se chama diálogo é, na imensa maioria das vezes, um jogo de confirmações e identificações. Uma questão de segurança social, ou seja, de saber quem compartilha das mesmas vulgaridades e dos mesmos preconceitos, mas disfarçada em diálogo.

É preciso identificar o diferente, para o poder rejeitar e, se necessário, combater. Isso é preciso, não o buscar saber a opinião alheia independentemente de qual ela seja. Porque a opinião alheia, como informação ou indicativo de algo a verificar, não importa minimamente. Só importa como elemento revelador de semelhança ou diferença.

As perguntas não visam a obter alguma informação que venha a subsidiar um pensamento ou mesmo a confirma-lo, mas a verificar o pertencimento a um grupo, delimitado pela aceitação de um acervo de preconceitos e pela inserção em um estrato social.

Claro que há excepções e uma delas explica-se pela má-fé, motivação tão forte quanto a ignorância ou a inércia social. A excepção  mais notável é aquela do interesse nas respostas como colheita de provas de acusação contra alguém. Nesse casos, o perguntador não quer confirmações, quer dados.

Esse desejo de obter dados tem raiz na necessidade de ter meios de chantagem, não no interesse de ampliar o campo de pensamento. Os mesmos que fazem perguntas que não o são, fazem-nas, às vezes, somente para ganhar meios de chantagem. Enfim, são duas formas a que recorrem os mesmos tipos de pessoas, aquelas cujo ser é menor que o poder ser, aquelas que se ocupam dos detalhes, os decoradores da vida que não se vive.

Sim, porque o mesmo sujeito que te pergunta, discretamente ou não, quanto tu tens e ganhas, também pergunta-te mentirosamente o que achas de uma idéia. O dado objetivo, ele quer saber para alimentar a criminosa suposição de que és criminoso, a opinião ele não quer absolutamente saber, quer apenas saber se corresponde à dele.

Quando escutas a pergunta por que não fazes assim ou assado, na verdade és indagado se fazes precisamente o que o perguntador faz. Quando escutas essa pergunta, és instado a fazer uma coisa, recebes uma ordem e um pedido de confirmação. Então, se respondes sinceramente desagradas o perguntador, mesmo que não o tenhas querido desagradar. Pronto, és maldito.

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