Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: janeiro 2011 (Page 4 of 5)

A marca da diferença. Umas palavras sobre a tacanhez social.

A marca pela diferença é atitude social. Ela precisa de indivíduos adultos – ou semi-adultos – reunidos em grupos. Adultos porque as crianças pré-púberes diferenciam em termos individuais absolutos, pouco induzidos por valorações sociais: aqui, está-se em nível ainda muito subjetivo. A evolução biológica e a sociabilização conduzem à marcação social.

O termo marca utiliza-se aqui com nítida significação de selo negativo, ou seja, marca-se alguém ou um grupo para evidenciar juízo de valor negativo e, se possível, de exclusão. Fica claro que é um dos vários mecanismos de obtenção e manutenção de poder em sociedade.

Não me parece que haja sociedades menos tendentes à marcação social que outras, até porque são constituídas da mesma matéria humana. Suas diferenças estruturais operam dentro do limite material que é a mesma constituição básica. Quer dizer, vários arranjos são possíveis com pessoas, mas todos eles limitados pela circunstância de sua constituição. Da mesma forma, podem-se fazer várias coisas de pedras, mas nada além dos limites da pedra.

É possível identificar, todavia, modelos estruturais sociais em suas várias etapas de desenvolvimento. Portanto, é possível perceber a mudança dos padrões de marcação social, até como uma espécie de maneira de datação de uma estrutura social. Claro que isso pressupõe a existência de modelos culturais mais ou menos uniformes, a caracterizarem que um grupo encontra-se em uma determinada linha civilizatória.

As diferenças, obviamente, dependem da proximidade com que se vêem os objetos. As formas de vida contemporâneas brasileira urbana e dinamarquesa urbana podem ser muito diferentes, observando-as de próximo. Se, todavia, afastamos a lupa e tomamos uma distância que permita colocar no campo visual a Indonésia, percebemos que as diferenças reduzem-se bastante entre os dois primeiros exemplos e tornam-se mais destacadas em relação ao terceiro.

Por isso, fala-se em civilizações, aqui sem qualquer juízo de valor, apenas como taxonomia psicológica, social, econômica, religiosa e política. Classificação a partir de raízes comuns e semelhanças e dessemelhanças, maiores ou menores. E os grupos civilizacionais podem encontrar-se em estágios diferentes de uma marcha que, se não é muito previsível, ao menos atende a certas probabilidades, devido às suas semelhanças.

Falar em estágios não significa dizer que as marcações sociais que lhes são próprias caracterizam uma evolução valorativa, senão que são diferenças, pura e simplesmente. Ou seja, o termo evolução tem aqui um sentido mais propriamente cronológico, ou histórico, embora não sejam conceitos iguais, tempo e história.

As marcações são prisões inescapáveis das maiorias. Sem fazê-las, sentem-se inseguras, impotentes, sem chão que pisarem. Como quero apontar os juízos de valor meus, deixo claro que o ser modo de agir das maiorias qualifica-lhes como um meio tacanho, na medida em que comuns e mais frequentes hábitos sociais são os que revelam menores usos das capacidades humanas. Assim é, mesmo que pareça desagradável a idéia de que a excelência implica minoria.

As maiorias marcam para identificar – a si e aos outros – para dominar, para excluir, para compreender o mundo em que vivem. Trata-se, portanto, de uma maneira de referenciação e de localização social. A partir de um ponto – de um complexo de atitudes verificadas na maioria – sabe-se identificar o ponto desviante e apontar esse desvio, convidar ao retorno à curva maioritária e, caso resulte falha a tentativa anterior, distinguir e punir socialmente com a marca da diferença.

A marca social implica que o qualificativo seja negativamente apreciado. Evidentemente, no sentido contrário, o sistema de marcação busca a todo custo evitar que os selos tornem-se inertes axiologicamente. Nesse momento, penso especificamente na marca da homossexualidade.

As pessoas em sua maioria têm avidez por compreender as outras segundo seus modelos. Não têm avidez pela compreensão, mas pela apreensão dos fatos sociais segundo as formas pré-estabelecidas de que dispõem. Querem, em outras palavras, saber em qual prateleira psico-social devem por uma pessoa e seu comportamento. Se não encontram o compartimento adequado, partem para marcar o diferente e marca-lo negativamente.

A necessidade de marcar negativamente tem uma interessante condicionante psicológica, além das previsíveis sociológicas: o ser comum, tacanho, sente-se pessoalmente ofendido por haver categorias que não caibam especificamente nas poucas prateleiras que seu cérebro tem. Algo como uma direta acusação de tacanheza, que deve ser repreendida.

No modelo civilizacional de matriz grega e monoteísta cristã, a marca da homossexualidade é negativa. Em diversos grupos inseridos nesse modelo, todavia, verifica-se que a marca persiste, embora adquira certa inércia valorativa e pareça apenas descritiva. Pode-se observar, nestes últimos, que o selo existe, embora não queira significar necessariamente a diferença negativa.

Há um elemento sutil que desponta nessa marcação e ele apresenta-se nítido em sociedades de recente transição de predomínio de cultura rural para cultura urbana, como dá-se com o Brasil. Trata-se da negatividade da marcação como homossexual, usada sem precisão e com propósito punitivo social exclusivo.

A utilização de uma marcação precisamente corresponde à sua adequação à conduta da pessoa marcada. Assim, chama-se homossexual – advirto que renuncio à utilização dos termos vulgares e à noção de que conferem verossimilhança àlgum texto – àquele que tem práticas sexuais voltadas a pessoas do mesmo sexo e, porque o termo é escasso de significado, àqueles que têm posturas homoafetivas, também.

Ou seja, na hipótese da marcação precisa, a maioria identifica o homossexual evidente para puni-lo, por diferenciação clara para com ela. Chama pelo nome uma conduta que verifica diferente, para marca-la. No limite, aceita-a criando uma prateleira cerebral para coloca-la, no lado em que são colocadas as coisas que reputa perigosas.

Essa forma, acima falada, é a pura marcação. Tacanheza que não impede a existência de outras maiores. As maiores podem fornecer o material da acusação da maior tacanheza, aquela que vem repleta de ignorância, indisfarçável.

Ocorre que o diferente nem sempre é facilmente classificável. E ocorre também que qualquer diferença é ameaçadora, até a indiferença. Logo, a indiferença a certas práticas e valores das maiorias precisa ser marcada. Aqui, volta um aspecto principalmente psicológico, ou seja, precisa ser marcado o que parece infirmar as verdades da maioria. Marca-se por reação do que se julga uma acusação.

Pouco importa, para a marcação social, que as condutas do marcado não estejam orientadas para o confronto do modelo maioritário. O confronto existe pela simples diferença, independentemente de aspectos volitivos. As maiorias sociais não punem pela vontade, mas pela simples diferença, que impede a apreensão de uma conduta por mentes comuns.

Assim, muitas vezes, a rejeição a práticas frequentes é tomada como rejeição à maioria. Esta, a maioria, precisa qualificar para si a rejeição e fá-lo a partir de critérios subjetivos e coletivos, marcando algo meio difuso com o selo que utiliza para negativar o que consegue distinguir mais precisamente.

Chego ao ponto: com preguiça de pensar e avaliar o entorno além dos miseráveis modelos que possui, a maioria qualifica imprecisamente tudo que se lhe afigura diferente. Com preguiça de pensar e tentar elaborar novas categorias negativas de marcação, a maioria usa do que dispõe.

Claro que classificando precisa ou imprecisamente a maioria está a marcar negativamente. Mas, a marcação imprecisa revela mais claramente a perversidade da padronização classificatória das maiorias: a tendência a julgar indistintamente, a julgar sumariamente, a julgar por critérios largos, ávida por punir rapidamente.

O que vi no Peru. Por Ubiratan Câmara.

A cosmopolita Cusco.

Antes de partirmos para Cusco, permitam-me compartilhar que a vontade primeira de conhecer o Peru partiu de saudosos encontros, em Campina Grande, nos quais fatalmente, cedo ou tarde, bons amigos de sobriedade questionável cantarolavam, junto com Mercedes Sosa, Acercate Cholito. Começou daí meu fascínio pelo país.

Pois bem. De Lima, partimos para Cusco, pela Peruvian Airlines, fornecedora dos bilhetes mais baratos, comprados pouco antecipadamente, no Brasil. Viagem confortável, convém registrar, uma vez que o velho 737 preservou nossa integridade física, diferentemente dos novos que por aqui operam, equipados com seus ínfimos e violadores espaços entre as poltronas.

Vale mencionar, ainda, que – inobstante a brevidade do voo e o pouco valor pago, comparado com o preço dos bilhetes brasileiros, em semelhantes condições de procura – nos ofereceram um lanche bastante razoável. Não que comida em avião seja primordial, não o é. Paga-se pelo deslocamento, afinal. Mas, ter a impressão de não ser tratado como carga, e pagar menos por isso, é desconcertante.

Chegamos a Cusco, enfim. Do alto, não parece a cidade acolher população superior a trezentos mil habitantes, segundo as duvidosas informações das enciclopédias virtuais. Engano meu, a cidade não é pequena.

Embora temido, o soroche – indesejado efeito da altitude – não nos vitimou, em momento algum da viagem. Nem mesmo logo após a chegada, em que me aventurei de imediato no prato típico da região, o porquinho cuy, embora alertado de que não deveria exagerar na alimentação. Eu, que como tudo que voa, nada ou rasteja, devorei e aprovei a iguaria, sozinho, já que Leila sequer a tocou. Resistências gastronômicas femininas…

O Cuy

Hora de caminhar. Topografia acidentada, ruas estreitas e – embora a colonização hispânica tenha muito destruído – resquícios incas estão em todos os lugares. Destes, o que mais impressionou na cidade foi o templo dedicado ao sol, Qorikancha, que teve seu ouro levado pela ganância dos colonizadores, mas preservou a beleza e precisão dos imensos encaixes de pedras.

O Qorikancha

Do tempo colonial, armações de madeira e sacadas de entalhes delicados, além de lindas igrejas.

A Catedral de Cusco

Andando um pouco mais, modernos restaurantes e lojas, inúmeras agências de turismo e a razão de ser dos empreendimentos: muitos – mas muitos mesmo – turistas! De dar na canela, como falamos em Campina. Assediados a cada passo para conhecer algum sítio arqueológico, cambiar ou apreciar um artesanato.

Gente do mundo inteiro, notadamente europeus e asiáticos, com suas agressivas fotográficas, que fizeram meu presente de aniversário parecer a Rolleyflex de Tom Jobim. (Uma pausa, pois Leila rebate implacável e violentamente minha ingratidão).

Um tarde foi suficiente para aproveitar passeios incríveis nos arredores de Cusco. Ruínas imponentes, ousados sistemas hidráulicos e geladas mesas de pedra para mumificação retratam a habilidade dos antigos moradores. Esses incas eram uns cientistas mesmo. Risos.

À noite, foi a oportunidade para conhecermos alguns, dos muitos, bares da cidade. Pessoas de todos os lugares do planeta a se divertir e tomar porres de pisco, a cachaça dos peruanos. Com o avançar da hora e a sobriedade abalada, era hora de se recolher.

Dividimos um táxi com uma simpática jovem colombiana. Subitamente, recordei os amigos e comecei a cantarolar Acercate Cholito. A colega colombiana, de pronto e inusitadamente, acompanhou. Se o taxista gostou, eu não sei! Mas ele já devia estar acostumado com turistas cantores, de afinação duvidosa.

Despedimos-nos com risos e uma sensação curiosa de pertencimento…

Três pessoas matam. Por que uma é melhor que outra?

A hipocrisia não é natural do humano. São-no a vergonha, a auto-complacência e a vontade de poder. Naturais são inclinações potenciais, o que não significa que se manifestem em todos os espécimes e com as mesmas intensidades, em todas as ocasiões.

A hipocrisia é um fato social, ou seja, somente faz sentido em grupos, maiores ou menores. É a escamotação para um grupo, não para si. Mentir para si mesmo é outra coisa, com outras implicações. Novamente, uma explicação: a hipocrisia, fato social, tem também implicações para os indivíduos isolados, mas sua raiz é o grupo.

A hipocrisia social – em quaisquer termos comparativos – é uma resultante de muitas vontades de poder reunidas por algum motivador comum. Torna-se eficaz por meio da difusão da mesma opinião, ainda que suavizada com matizes de diferenças insignificantes.

Esses dois aspectos, o móvel e o instrumento, retro-alimentam-se. A existência de uma motivação comum gera a difusão do discurso hipócrita e esta, a difusão do discurso, reforça a motivação.

É fácil perceber que tal sistema tem muito de involuntário na sua marcha autônoma, ou seja, na sua replicação automática. Porém, essa componente inercial de irracionalidade não significa a inexistência de elementos voluntários bem definidos, na base do seu funcionamento.

O sistema resulta em um instrumento para a obtenção e a manutenção de poder, o que revela seu aspecto útil. E utilidade significa que a ferramenta não funciona apenas por si: ela é manejada deliberadamente, também.

A difusão da informação desempenha o papel da vontade racionalmente dirigida no sentido de usar a hipocrisia como instrumento de poder. Pois ela tem raízes sólidas nas mentalidades do público e convém regá-las sempre, para que se aprofundem mais e mais.

Mata-se e rouba-se bastante, no mundo. E isso faz-se para obter domínio, abstraindo-se dos casos minoritários de demência ou de honra. E prova que o domínio é buscado independentemente de considerações sobre os instrumentos necessários. Alguns, todavia, causam reprovações sociais variáveis e aqui entra a hipocrisia, como um óleo a facilitar o convívio de engrenagens de aço duro.

Hoje, um país, os Estados Unidos da América do Norte, faz tudo que sempre se fez para que seus cidadão gozem de elevada prosperidade relativa, a custo da pobreza, também relativa, dos outros. Nisso, nada há de inovador ou diferente do que fizeram países predominantes, na história.

Diferente é a massiva utilização da hipocrisia como instrumento para obter e manter a dominação. Evidentemente, essa circunstância é historicamente perceptível, porque os meios de comunicação de massas desenvolveram-se excessivamente a par c0m a ascensão desse país.

Tudo que esse país e seus vassalos – que predominaram no mundo anteriormente – fazem, faz-se desde que o planeta é habitado por gente que se considera humanóide e vive em comum. Mas, desse tudo comum, apenas o que fazem países que os EUA reputam indesejáveis é propagandeado e considerado ruim e absurdo.

Digo isso a propósito de mais uma de inúmeras revelações de resultantes de ações norte-americanas em nome de intenções aparentemente boas. O fato é que os EUA bombardearam a Sérvia – inclusive com munições de fósforo e urânio empobrecido, proibidas pela farsa que é a ONU – para criar um Kosovo e uma Bósnia livres da Sérvia.

Livres da Sérvia ficaram a Bósnia e o Kosovo e foram processados ilegalmente líderes sérvios. Todavia, não ficaram livres das máfias kosovares vários sérvios assassinados para a retirada de órgão destinados ao tráfico ilegal.

Um ex-procurado suíço, Dick Marty, produziu um relatório sobre os assassinatos de sérvios por máfias kosovares para retirada de órgãos destinados ao mercado ilegal. E disse que os países europeus e os EUA sabiam do que ocorria e nada disseram. Ou seja, faz-se um morticínio com armas ilegais, a bem de algo tão difuso como a liberdade, para instalar faltas de liberdade tais como essa.

Se nos voltarmos para o lugar mais que comum do discurso da implementação da democracia, lembraremos que os EUA promoveram inúmeras ditaduras, nas Américas do Sul e Central, na África e na Ásia, para estabelecer a democracia. Curiosos casos de remédios que matam os doentes, além de incoerência evidente.

Curioso também lembrar que a falta da tal democracia não causa qualquer espanto em países dóceis ou vassalos, como a Arábia Saudita e o Egito, sobre que os EUA não dizem uma palavra. Isso é compreensível e o silêncio da opinião pública também. Mas, o silêncio desta última não é estratégico, mas pura burrice e fala de crítica.

Os promotores da democracia e da liberdade não se furtam a manter campos de concentração de prisioneiros ilegais, nem de fazer seus súditos europeus cúmplices dessas práticas, embora falem sem parar contra o mesmo praticado por inimigos.

Os campeões da liberdade falam em direitos humanos e apontam o dedo contra seus inimigos, mas executam pessoas julgadas em processos mais que suspeitos, verdadeiros linchamentos públicos que nada têm com justiça.

Os líderes do mundo e campeões na utilização da hipocrisia decairão. Mas terão produzido danos profundos nas mentalidades de milhões de pessoas que não aprenderam a pensar de outra forma além da superficialidade e da aparência. Elas serão os clarões de uma estrela que morre, clarões perigosíssimos de explosões de hélio.

Avançaram o que não precisava de estímulo: a burrice generalizada da opinião acrítica das massas incontroláveis. Isso cobrará seu preço em incompreensão, em gerações sem rumo, em vale-tudo, em ápices de lugares-comuns repetidos como se fossem ciência. Isso levará muito tempo para reorganizar-se e deve-se esperar que a China seja capaz de fazê-lo.

Itália percebe que não pode chantagear o Brasil no caso Battisti.

Não utilizo a palavra chantagem, no título, para escandalizar com bobagem terminológica. Utilizo-a porque é precisamente de chantagens várias que são feitas as relações políticas internacionais, embora sob disfarces e com aparência de submissão a regras invioláveis.

O caso é que o governo brasileiro concedeu asilo a Cesare Battisti e, consequentemente, negou a extradição dele, pedida pela Itália. Esse pequeno texto não visa a expor posição sobre o caso, por isso limito-me a dizer que me parece errada a posição do governo brasileiro, porque reputo comuns os crimes de Battisti.

O que chama atenção, abstraindo-se do caso em si, é que a Itália percebeu a inviabilidade de chantagear comercialmente o Brasil, como forma de pressionar pela extradição, ou de retaliar pela não concessão dela. Ou seja, o Brasil tem um peso econômico que não recomenda a travagem de relações comerciais ou a imposição de barreiras fiscais.

Esse é o fato novo com relação ao Brasil: seu peso econômico mundial e os reflexos nas relações com os estados soberanos. Por um lado, o fato parece ser melhor percebido fora do país que dentro dele. Assim, excepto por alguns grupos e pelo governo,  a maioria do povo está alheia a essa entrada no protagonismo internacional.

Tal alheamento é resultante de falta de educação formal, de falta de tempo para ocupar-se com coisas outras além da sobrevivência e da massiva desinformação promovida por setores da imprensa que jogam pela tese da dependência.

O problema da idéia da dependência é que ela propõe a impossibilidade de rompimento desse tipo de relação, ou seja, é uma tese que se retro alimenta. Assim, é mais uma proposição política que uma teoria científica das relações internacionais.

O país necessita compreender bem a situação que ocupa e ocupará cada vez mais, para não ser aquilo que os argentinos diziam e ainda dizem: um elefante desgovernado. Precisa compreender quais vantagens pode retirar do seu crescente peso econômico e político internacional, para não subestimar, nem superestimar a realidade.

O papagaio de Jeremias. Episódio da vida anusmundense.

Por Leo de Picos.


Jeremias nasceu e criou-se em Anus Mundi. Era filho do sacristão da matriz de São Sebastião, chamado José Teobaldo, conhecido pela alcunha de Zé Catolé. Zé Catolé foi pai de onze filhos, sendo quatro mulheres e sete homens. Jeremias foi o sexto dessa linha de produção.

Todos podem imaginar a dificuldade de se criar tanta gente com o salário de sacristão, mas cada filho que ficava taludinho ia procurando ou inventando uma viração para ajudar nas despesas. Jeremias desde menino despontava como o mais esperto, inteligente e criativo.

Era afilhado do Padre Almiro, que foi quem lhe deu esse nome. Chegou à igreja para o batismo alguns dias após ter nascido e seus pais não sabiam que nome lhe atribuir. Geralmente os batizados celebrados pelo Padre Almiro eram feitos no atacado. O vigário só atendia individualmente casos especiais, como crianças que estivessem doentes e prestes a morrer ou então aquelas filhas de pessoas influentes da cidade e de bom poder aquisitivo.  Até porque a igreja vive das doações de seus bons e generosos fieis.

Na hora da cerimônia, Padre Almiro vira-se prá Zé Catolé e D. Prazeres, sua mulher, e pergunta o nome da criança e quem são os padrinhos. A resposta veio na bucha: nem tem nome nem padrinho! O senhor, padre, é quem vai dar o nome e ser o padrinho. Padre Almiro não estranhava porque essa era uma prática comum nos dias de batizado. Vira-se prá dona Paixão, sua ajudante, e manda olhar na relação se ainda tem algum nome disponível. A resposta foi negativa. Todos já estavam riscados. Vira-se mais uma vez prá Zé Catolé e pergunta: que dia nasceu?  O pai teve dúvidas mas dona Prazeres respondeu de pronto:  primeiro de maio! A ajudante, dona Paixão recorre à folhinha do santo do dia e diz ao padre que primeiro de maio é dia de São Jeremias. Pronto, é Jeremias!

Jeremias criou-se dentro dos ensinamentos da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana. Foi coroinha de Padre Almiro, aprendeu o ofício de sineiro.

Era um menino batalhador.  Adorava ganhar dinheiro. Apesar de conviver dentro da igreja era temperamental ao extremo. Não guardava desaforo, era portador de uma pequena gagueira e saía na tapa com quem fizesse qualquer tipo de gozação. Não sei se coincidência ou coisas de Deus, mas dizem que São Jeremias também era gago.

Na adolescência, fugiu num circo que havia armado na cidade. Passou vários anos desaparecido. Um belo dia volta prá cidade aquele sujeito forte de tamanho avantajado, casado com uma cabocla baiana chamada Jurema, que ele conheceu nas suas andanças. Vem com uma atividade que não tem nada a ver com suas raízes religiosas: PAI DE SANTO!

De início, muita gente estranhou, mas logo foram se acostumando.

Jeremias, com seu espírito empreendedor e pensando se dar bem na vida,  montou seu terreiro numa localidade chamada Caldeirão do Periquito, que ficava próxima à entrada da cidade.

O tempo foi passando, o negócio foi dando certo e sua fama de grande Xangozeiro foi se espalhando; vinha gente de toda a região e de lugares distantes, até de outros estados, na busca de cura para os seus males e soluções para os seus problemas.

No altar de seus orixás, existiam Caboclos, Pretos-Velhos, Exus, Pombas-Gira, Zé Pilintra e outros.

Em seu templo, Jeremias criava um papagaio, muito falador, que era seu grande companheiro. O animal assistia aquelas manifestações e se mantinha calado, numa postura eticamente correta para um animal, o que agradava ainda mais ao seu dono. De vez em quando o papagaio, mesmo calado, apresentava alguns sintomas de que estava recebendo alguma entidade do além e era preciso uma ação imediata de Jeremias, que fazia uma pequena sessão de desobsessão e depois  colocava um pequeno galho de arruda em baixo de sua asa esquerda… e a coisa se acalmava.

Heleno Fogueteiro gostava de tomar umas cachaças e fazer arruaças quando tava com o “quengo cheio da maldita”. Um belo dia, depois de passar o tempo todo enchendo a cara, juntou-se com mais dois iguais e resolveu alugar um carro na praça e ir até o terreiro de Jeremias acabar com o xangô.

O salão lotado, chega Heleno, vai até o altar puxa a toalha, derruba todas as imagens e as oferendas ali  colocadas. A mais danificada foi a de Zé Pilintra, que teve a cabeça decepada na queda.

Jeremias, imediatamente, agarra-se com Heleno e seus companheiros e  começa uma briga. Os amigos???  Quando notaram que a barra era pesada pegaram o beco e deixaram Heleno sozinho nas garras do xangozeiro. Nessas alturas o salão fica vazio. Corre todo mundo. O quebra-quebra era grande. Depois de muito tempo, após escutar o barulho de um tiro, Euzébio, o motorista que levou Heleno, toma coragem e consegue entrar no salão e tirá-lo das garras de Jeremias.

O tiro tinha sido disparado pelo Pai de Santo mas pegou de raspão. Heleno levou uma surra tão grande que ficou desacordado por algum tempo, até Euzébio pegá-lo pelo ombro e levá-lo até o carro. Na saída passaram defronte ao papagaio, que foi a única testemunha a assistir toda aquela cena. Nessa hora, o papagaio vendo Heleno todo arrebentado, o sangue escorrendo pela cara, como que querendo enaltecer a vitória do seu amo, diz em bom português:

“Fu…fu…fudeu-se, na volta de Je…Je…Jeremias e de Zé Pi…Pi…Pilintra não tem moleza!!!”

O que vi no Peru. Por Ubiratan Câmara.

O caos e a ordem convivem em harmonia… Lima.


Lima é uma cidade feia, suja e desinteressante. Uma São Paulo piorada. Dois dias no máximo, pois não há o que se fazer lá. Este era o testemunho que obtive de algumas pessoas que haviam conhecido a capital Peruana há alguns anos. Imagino que algo mudou…

Ao sairmos do aeroporto, o caos mostrou a sua face. O trânsito é realmente caótico. A buzina é a consagração nacional. Uma loucura! Porém, o mais incrível é que não há agressividade nas pessoas, caso possam imaginar os mais adiantados.

Não presenciamos uma única expressão de inquietação, raiva ou impaciência dos motoristas, sejam nos táxis ou nos coletivos. Cruzam-se vias sem qualquer pudor, ultrapassam-se sinais vermelhos, interrompem-se cruzamentos, tudo orquestrado reiterada e harmoniosamente pelas buzinas. Violência – além da sonora – não há!

Superada a impressão inicial, estávamos na periferia de Callao, em direção a Lima, propriamente, quando algo nos chamou muitíssimo a atenção: apesar de estarmos em uma região pobre, não havia lixo nas ruas.Não havia um único saco de lixo esquecido nas ruas!

Afastada a sugestão de que os cientistas pré-hispânicos haviam criado dutos subterrâneos para incinerar seus detritos no centro do planeta, constatamos que o lixo era depositado e recolhido nas ruas durante a madrugada. Assim, mantinha-se limpa a cidade… toda ela, democraticamente!

Na cidade de Pizarro, bastava o clima – 17° C, sem precipitação – para causar apreço pela cidade, e afastar a lembrança do calor desconfortável e irritante do Recife. Mais do que isso, verdes parques e lindas praças surgiam de todos os lados em nossas expedições.

Prédios e monumentos históricos bonitos e conservados a impressionar e retratar a implacável colonização hispânica. Luminosas fontes a dançar em harmonia com as estações de Vivaldi e outras do gênero. Pessoas simpáticas e ótimo atendimento em todos os locais. Investimentos vigorosos na urbanização das margens do pacífico. Não faltam motivos, pois, para gostar da cidade, para se sentir bem.

Não posso esquecer o mais importante: poder andar pela cidade sem qualquer receio de violência, nem providenciar esconderijos genitais para pertences…sem medo, enfim. Banalidade tão evidente que desconhecemos e ainda pagamos caro por tudo.

Eis Lima, uma grande cidade, cosmopolita, onde o histórico convive em harmonia com o moderno, com muitos contrastes, é verdade, mas limpa e organizada… mais justa com os seus.

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